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quarta-feira, 20 de maio de 2009

A talentosa de amarelo.

Sempre, ela me interrompe na faxina, perguntando-me se eu tenho um isqueiro. Na maioria das vezes eu tenho. Isso é a a única coisa que nos liga. Uma faxineira e uma atriz, a mesma necessidade de soprar fumaça cinza. Não sei porquê com tanto dinheiro que deve ter, fogo ela nunca tem. Tenho a mera impressão de que me pedir um isqueiro quando estou a varrer seu camarim, seja um pedido de socorro, um jeito de não estar consigo mesma, um jeito de me fazer percebê-la. Uma mulher de talento, nunca vou entender. Não me arrisco entrar em contato com ela, apenas ponho a mão no bolso e entrego seu vício cinicamente, sem sorriso, sem nada, como se ela mandasse em mim. De certo modo, a beleza dela me deixa sem graça, acho que ela é uma das mais belas mulheres que eu já varri camarim, ela tem um nariz feio, mas quase imperceptível em comparação ao que mais chama atenção nela, os cabelos, brilham tanto! Que às vezes me parece o redor do fogo que ela nunca tem, ou um raio de sol materializado.
É engraçado como todas as sextas ela está vestida diferente, me parece que temos até um encontro marcado. Um dia, ela estava toda de vermelho, faria uma personagem sedutora, outro dia toda de azul, faria uma mulher de governador, outro dia, não muito longe, estava toda de preto! Esse dia ela estava um arraso! Faria uma viúva. Lembrei de mim.
Troco apenas duas falas com ela: "Licença, posso entrar?" e "Estou de saída.", agora, trocamos três, porque ela exigiu outro dia que toda vez que eu saísse desejasse muita merda para ela, no começo eu fiquei meio sem jeito, mas depois entendi que faz parte do mundo dos talentosos dizer certas coisas sem nexo.
Dizem que ela é muito boa nos palcos, mas eu nunca vi nenhuma apresentação sua, a não ser alguns ensaios na frente do espelho, que é de onde eu descubro suas personagens, mas se no espelho ela faz bonito, deve fazer bonito no real.
Um dia, entrei no camarim e ela já estava se apresentando, quando se apresenta, não volta muito cedo, e eu aproveitei para me olhar naquele espelho tão especial.
Eu, minha vassoura e meu avental fomos um personagem por alguns minutos, lembrei de meu falecido, morreu jovem o meu amor, lembrei depois do meu papel, faxineira, com isqueiros, viúva e sempre sabendo do diabo do amanhã, acho que tenho inveja da loira, pelo menos ela representa pessoas todas as sextas.
Nesse dia, a bolsa da atriz estava aberta e em um impulso levei a bolsa comigo, e peguei um vestido amarelo que estava pendurado perto dali.
Na rua, eu já estava arrependida do que tinha feito, mas não voltei.
Em casa vesti o vestido, passei a maquiagem que tinha na bolsa, olhei as fotos e recados sem vergonhas que eu nunca iria imaginar existir ali, e bebi em um bar chique da esquina, eu estava representando pela terceira vez na vida.
Uma foi quando casei, eu era uma noiva, ria feito boba das pessoas que me olhavam, da segunda vez foi no velório, quando fui viúva, chorava feito boba das pessoas que me olhavam, e agora eu era uma talentosa... de amarelo e chique.
Não sei se foi o amarelo, mas o público não me aplaudiu, mesmo assim eu sorria feito boba para quem passasse. Depois de alguns copos, lembrei do falecido, deu vontade de soprar fumaça, e eu não tinha isqueiros. Me senti então, apagada.
Voltei para casa, como eu estava bonita no espelho. Mandei a bolsa e o vestido como encomenda para o teatro, e desse segredo só eu sei, e quem sabe... o falecido...
Ninguém desconfiou de mim, e ainda varro nas sextas o camarim da tal atriz, ela me pede isqueiros ainda, e pensa que algum homem mandou a bolsa e o vestido para ela, por conta de um recado que deixei na bolsa.
Nunca mais representei, meu papel me satifaz e eu ainda entrego isqueiros à ela, eu sempre tenho isqueiros! E isso... me acende.

5 comentários:

cÁh! disse...

cara, eu amo o jeito q vc escreve... :)

Geisa disse...

Este post daria uma linda peça de teatro. Bj ! Geisa

blog do gallo disse...

tô com inveja... agora começa a surgir o talento.

"Não basta ter-se talento: é preciso ter-se o vosso assentimento para o possuir, - não é verdade, meus amigos?"

Friedrich Nietzsche

Elisa disse...

Brilhante!

Bj e te amo.

Marina de Alcântara Alencar, a Nina. disse...

lindo, maravilhoso, brilhante, fascinante e ao mesmo tempo nostálgico.
Faltam-me adjetivos para descrever.