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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Sagrado

Descubro em ti um amor admirável. Te acho inteligente, atenciosa, humana e errante. Tu quebras como eu, brigas como eu, percebe como eu, fala o que pensa, dá risada, é bem humorada... e feliz, mesmo que por dentro tenhas tristezas engavetadas. Descubro em mim uma paixão ensurdecedora. Me acho pretensiosa, quiçá seja eu tua fã, teu segredo, um pacto sagrado... o teu lado. Sou teu lado há tanto tempo... Quando tu contas as histórias, meus ouvidos se enfeitiçam. Quando me lembro das histórias, minhas lembranças te enobrecem, apesar de todas as imaturidades e certezas que eu já pequena, sabia. Talvez não fosse ideal, mas era a que eu tanto gostava. Talvez não fosse tão amada, mas era a que eu queria que fosse. Talvez não fosse a mais presente, mas era a que eu sempre esperava incansavelmente. As vezes estranhamente ainda estou lá... quando a casa ainda não estava reformada, quando as árvores ainda não haviam sido cortadas, quando haviam mais grades, um poço, casinha de cachorro, raizes de árvores pelo corredor da mangueira, portãozinho e portãozão, placa de cuidado com o cão... nós quatro, num quarto. 

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Teu espírito agora

João, nem sei se teu nome verdadeiro era esse, mas desde que você resolveu ir embora da sua vida, me sinto mais fraca. As vezes olho o que você  escrevia e penso porque não me aproximei, porque não perguntei mais, porque admirava tanto e nunca falei na mesma proporção. Sempre tive curiosidade sobre sua foto, seu trabalho e que infância ou adolescência teria tido pra ter as visões políticas críticas e bem humoradas que parecias ter. Quando teve greve dos caminhoneiros, fiquei a pensar que piadas boas tu terias feito se estivesse vivo nesse alarme falso do nosso país. Te achava um cara tão bacana, eu podia ter te visitado um dia. Lembro quando me seguiu de volta e me senti mais interessante. Sua morte não acabou só com você... mas também com a fantasia de quem não te conhecia mas esperava mais... muito mais de você. Nessa madrugada de insônia, imagino com quem teus cachorros estariam e o que se passou na sua cabeça no dia das mães. A vida é tão frágil meu deus... queria que tivesse tido coragem. Mas sabe? Nem eu tenho. Eu não julgo teu tédio, teu medo, a previsibilidade da vida... tão poucas vezes temos um pingo de felicidade de fazer os olhos brilharem. E talvez ainda metade das vezes não seja sóbrio. Tua morte mexe comigo porque me sentia parecida contigo. Da tua turma numa fantasia de recreio da escola, do teu partido numa fantasia de filiação, da tua causa e lado numa fantasia de rua. Quando penso ‘menos um’, ‘menos um como eu’ me sinto corpo sem alma. Pesada. Murcha. Espalhada por aí... as vezes imagino que cor teria teu espírito agora, e se sofres num submundo, se se esconde, se apenas está morto mesmo. Sua irmã respondeu minha mensagem e senti uma grande solidão com suas poucas palavras e explicações do que aconteceu e acontecia contigo. Apesar de ter acabado contigo mesmo, as vezes sutilmente também te acho corajoso. Você fingia bem. Quantos de nós também não pensamos isso as vezes, mas falamos disso o tempo inteiro em brincadeiras? Ou quantos de nós já não estamos mortos há muito tempo e encenamos uma falsa existência para os outros. A paz e possui-lá é um marketing pesado, João. Poderíamos ter batido um papo sobre isso. É meio injusto que teu cérebro não tenha mais vida pra compartilhar ideias conosco. É meio injusto ter cérebro também. 

sábado, 10 de novembro de 2018

Encaixe

Estou no centro da angústia há dias. Estou com 10 anos a menos. Toda marcada. Algum dia sairei da estaca zero? Sinto pena de mim diversas vezes e mais pena ainda por sentir pena. Queria entender porque sou tão vitimista... choro ao dirigir sozinha e me sinto acompanhada. Grito e grito um grito de desespero. Uma dor invisível abraça minha mente e me faz arrancar as unhas dos pés e machucar a minha pele. Queria ajudar mas não consigo. Queria amar melhor, mas não consigo. Escuto uma voz que diz que vou me arrepender de não ter sido mais carinhosa. Vou me arrepender quando todos estiverem ido embora. Tenho tudo que muita gente não tem e ao mesmo tempo não tenho nada. As vezes tenho surtos de querer uma aventura. Pular da ponte, atirar o pau nos rapazes desconhecidos, quebrar alguém na porrada, dirigir em alta velocidade e jogar o carro de uma ribanceira, cortar meus pulsos d e v a g a r...  Me falta tesão. Me falta o não. Não tenho respeito por ninguém. Joguei tudo que estava na mesa no chão e agora não consigo organizar a bagunça...não consigo consertar as coisas. Me pergunto por que correr atrás? Por que insistir em tantos planos e etapas se é só isso? Se é um caminho predestinado...
Nunca sei de fato o que eu quero... por muito tempo seria o sucesso. O grande sonho do sucesso. Mas não pago o preço... não sei o caminho, todos de repente são culpados. E eu me perco no meu mar de receios e medos. Pelos deuses! O que eu quero?! O que eu significo? No que sou útil? Por que não posso ser simples? Por que tão inconformada? Impaciente e impulsiva? A raiva toma conta do meu ser... dia e noite vejo que é só isso mesmo. Apenas isso. Nada mais. Temos que seguir o plano deles? Lutar pelo plano deles? Sou péssima... péssima... péssima... eu não me encaixo, nem nunca encaixei... Mas eu não me encaixo... eu não me encaixo. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Traição

Não é mais a pele dele que incendeia meu corpo. Mas eu precisava conversar com quem não me conhecesse tanto, com quem apenas conhecesse uma parte minha que eu gosto que seja vista. As vezes me canso de ser tão crua, de ser tão inteira e de estar num destino um tanto previsível. Me sinto tão egoísta agora. Mas meu desejo ali era encontrá-lo porque sei que não espera nada de mim. Por algum motivo, era com ele que eu precisava conversar. Porque já tivemos algum encanto e porque de fato isso já me deixou bem anos atrás... é com quem eu já sabia que dava certo foder. E fodemos. Quando nossos olhos se encontraram, até esqueci que era traição. Fiquei leve, como era antes. Quis te abraçar e fui abraçada antes mesmo de pedir. Ele gosta de mim tanto quanto eu. Batemos um bom papo, foi um lindo abraço e duas horas se passaram muito rapidamente. Como sempre ele mora em lugares esquisitos com pessoas misteriosas. E é impressionante como não me incomodo nessas horas. Sem mudar minha vida e sem fazer planos, nosso encontro é sempre com essa regra não falada. O tempo pareceu que havia voltado para uma época aonde meu destino era só meu, da liberdade e principalmente da minha iluminada solidão. Ri das histórias dele. Acho que dessa vez ele esteve com pessoas importantes e nem sabe. Sempre solto, sempre leve, sempre andarilho. Isso algumas vezes me é excitante... me sinto mais jovem e quase imortal. Sou quase uma espécie de vampira com ele. Não tomei iniciativa, de alguma maneira é charmoso ser assim com os homens. Ainda estava em dúvida se teria coragem para encostar meus lábios no dele. Não parecia adequado apesar de sentir vontade. Ele me beijou de supetão e como antes, não beija muito bem. Disse na hora, porque não consigo ser desonesta. Ele riu como sempre e disse junto comigo parecendo uma criança como ainda babava um pouco e parecia meio descontrolado e tinha o bigode e a barba cheirando cigarro paiêro...
Quando tiramos as roupas e encostou no meu corpo, senti como sentia antes... uma ardência nos meus braços e as partes de baixo derretendo, ainda que tuas mãos não fossem macias como a dela. De fato, eu não estava totalmente ali como antes. Havia a presença dela comigo e comparei diversas vezes. Gostei de te dar prazer e calafrios, das minhas performances através dos teus olhares, mas tive mais certeza que furaria meu dedo e faria um pacto apenas com ela.
Te abracei e desabafei sobre eu e ela no teu peito, percebi que tu tem medo que eu comente com tanta sinceridade e amor sobre ela, mas aos poucos também percebi que tu entende que não tem nada a ver com a gente. No fundo você sabe que tem um lugar especial, ainda que não seja protagonista da cena do meu coração. Por outro lado, também não queria me sentir vadia, traiçoeira e cara de pau... era uma forma de ser tua amiga e não amante.
Quando chegou na minha parte preferida, comparei novamente. Lembrei dela e até tentei disfarçar. Quem sabe se eu imaginasse que fosse ela, não chegaria com mais facilidade... mas não era, e não cheguei. Disfarcei amigavelmente. Havia me esquecido também como era fingir com os homens nessas horas. Depois dela não fingi mais nenhuma vez. É como se não precisasse... é como se fosse inevitável não chegar também. Dessa vez não fui honesta contigo, não queria que fizesse esforço pra me agradar. Fiquei constrangida por todo aquele plano em vão. Afinal de contas, o que diabos eu queria de fato? Matar uma saudade que não existe desse tanto? Resgatar sensações que já conheço? Ou amá-la profundamente do avesso?
Chamei o carro e você pareceu um pouco triste e com raiva da minha pressa. Não fique assim, eu disse carinhosamente. A gente sempre vai se ver uma hora ou outra, tentei ser divertida. Eu sei, eu sei... ele disse e foi tentando me esquecer antes mesmo que eu me fosse, quando acendeu seu paiêro. Sentados, vendo a lua, esperando o carro comigo na calçada, foi engraçado quando ele pediu permissão para colocar as mãos ao redor da minha cintura, como se a qualquer momento eu pudesse escapar. Besta! Eu disse sorrindo me sentindo um pouco ruim... - meu deus, até agorinha estávamos cheios de intimidade no colchão! Você deu uma gargalhada e quebramos o gelo da situação.Eu gosto muito dela, pensei ao entrar no carro e dar tchau pra ele através do vidro, apagando toda a situação.   

o sopro

Não sei mais escrever.
Há dez anos atrás, sem técnicas, sem algumas cicatrizes sérias na alma, sem trabalho e instituições entrando pelas minhas veias como droga, eu... eu fui gênia.
Talvez seja mais fácil olhar para trás e dizer que tudo era bom.
Com o tempo também adulteramos memórias sem perceber.
Pra ser menos duro, ou pra alguma única vez na vida ser mais fácil.
Hoje, sou pureza com sonhos perturbados, confusos e esvoaçantes que bateram naquele peito.
Não sinto falta. Não voltaria no tempo. Mas eu sabia tanto sem saber de nadinha... Dez anos.
Vinte e sete e com dezessete, recordo-me como parecia tão mais sagaz...
Sabia tanto sobre mim, hoje sempre irritada, paranoica e cansada, tento não saber.
Dez anos e nenhum suicídio, dez anos e nenhuma carta na manga, dez anos e alguns fantasmas colecionados, dez anos e algumas decepções, perca de cabelo, peitos caindo...ah, a vida que naquela época havia tanta sede...
Quantas mudanças sem sentido,
quantos caminhos sem saber para onde ia e porquê,
quantas estradas sem nenhuma escolha própria,
sem consciência... nunca soube, não é mesmo? O meu lugar. Meu paradeiro. De que grupo eu realmente fazia parte. Sempre soube ao mesmo tempo que não era possível ter certeza de nada. Fico triste, por não saber mais escrever, não saber mais criar, não saber mais ler, ouvir, não saber mais dizer como antes, escutar como antes...o sopro é a vida. 
Queria voltar a escrever como antes. Deslanchando, interrompendo, pensando no hoje como se fosse amanhã, pensando no amanhã por causa do ontem, eu queria de novo daquele jeito. Era todo espontâneo, todo original, criativo, clássico e moderno ao mesmo tempo... Ah, como era gostoso ser eu! Depois de um tempo fui ficando mais óbvia e tudo tão mais claro... Bom mesmo era quando era misteriosa, agora é como se eu possuísse tintas e várias latas de tintas de uma estante que tem em toda casa. Sabe toda loja? E a paleta, e aquela cor desgraçada que todo mundo gosta, todo mundo tem, todo mundo conhece e namora...
Antes não, antes eu não sabia o preço, o nome, a origem... eu não sabia nem o nome da cor e pintava. Agora que tudo sei, nada mais sei...
Sobraram em mim resquício desse tempo profundo, eu pinto uma árvore no meu quarto adulto. Antes um cenário pra tantos medos e fantasias, agora mais sério e confortável, mas com uma árvore que eu inventei. Ela começa em um dos cantos dos quadrados que eu chamo de parede. Enxergo e crio seus troncos como se saíssem do lugar misterioso que já me teve...e os pinto atravessando as paredes como veias cheias de sangue, entende? Como vida ou veneno de cobra procurando contaminar a vida que pulsa de um corpo cansado, demo dê que não encontra tempo, pensa em contas para pagar e não encontra flores e folhagens a não ser que se pinte.
É até aí que o tronco pode ir. Com azul e lilás, crio uma vegetação raríssima do meu cerrado imaginário. Foi eu que criei, eu posso escolher. Sou dona e proprietária dessa semente que germina e de vez em quando cresce, cresce e aparece em outro canto do meu quadrado...minhas paredes. Aliás, quem inventou que os quartos haveriam de ser quadrados? Me faço essa pergunta como se ainda fosse jovem pra me preocupar com esse tipo de curiosidade...E imagino pintando que as folhagens sejam redondas e macias. Imagino tocando-as caso fossem de verdade. Meio algodão, meio um doce de açúcar se desmanchando... Então eu paro pra descansar e a árvore crescer. Nessa parte minha árvore é igual as demais... demora a crescer.