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sexta-feira, 22 de abril de 2016

Muita sorte - Parte I

Genivaldo nunca me ouviu direito, o que também não significava que me ouvia errado. Tudo que meu marido ouvia era o que ele queria ouvir. Essa era sua maior qualidade, e eu ficava impressionada em como Genivaldo tinha realmente nascido com esse dom. Quando pessoas como eu, cruzam o caminho de pessoas como o do Genivaldo, ter passado a maior parte da vida meio perdida e seguindo o que as pessoas pedem para que você faça e para que você conclua, começa a parecer uma grande sorte na vida. Pelo menos era isso que minha mãe dizia quando abotoava meu vestido de casamento. Você tem muita sorte minha filha, muita sorte. Uma pessoa decidida como o Genivaldo não é fácil de encontrar. Minha vó arrumava minha grinalda, tentando não transparecer a pena que sentia de mim. Ela bem sabia que eu não estava preparada para um casamento, mas como também considerava Genivaldo o cara, eu era uma menina que poderia ser uma mulher de sorte.
Pode ser também que eu já tenha nascida sortuda. Essa piedade me acompanhou na época do colegial. Professoras falavam coisas parecidas. Você tem sorte, só passou porque o conselho de classe te ajudou. Você tem sorte, a coordenadora não vai mandar cartas avisando de suas notas baixas dessa vez. Quando o apartamento estava pronto, meu irmão, numa visita com seus filhos, também disse. Você tem muita sorte, seu apartamento é realmente muito bonito maninha.
Demorei alguns anos pra perceber que as cores do apartamento, no final das contas nem era eu que tínha escolhido. Genivaldo tinha essa qualidade também, de parecer que eu era muito boa em escolher cores de paredes. Brigava comigo durante uma semana porque eu não me importava com as paredes do nosso próprio ninho. Depois, quando eu finalmente escolhia a cor, dizia que ela era boa, me dava um beijo e em seguida fazia uma cara de apaixonado e falava estar feliz por eu ter me esforçado. Daí então, escolhia ele mesmo, outra cor para pintar as paredes.
Enquanto fazíamos amor, Genivaldo era realmente o homem da minha vida. Aliás, era o único. Mas eu não gostava do cheiro do Genivaldo no meu corpo por muito tempo. Não sei como fui capaz disso, mas a verdade é que um dos motivos que me manteve firme no altar, era um pouco minha dependência sexual por Genivaldo. Não parece muito saudável falar sobre isso, mas evitei muitas brigas para que não ficássemos sem sexo quando fossemos nos deitar. E concordei com ele, em inúmeros problemas, mesmo que eu estivesse certa, por causa do sexo. Conviver com o Genivaldo sem o sexo, era insuportável pra mim. E não era bem o sexo que ele fazia propriamente dito, que me amarrava por completo. É claro que meu marido me fodia com qualidade, mas o que estou tentando dizer, era que Genivaldo me fazia sentir ser muito mais do que eu podia imaginar durante o sexo. Essa sensação de poder me agradava, me excitava e o principal! Me fazia sentir viva. Eu bem sabia que eu nunca fui realmente a mulher mais gostosa da vida de Genivaldo. Eu era fogosa, mas inexperiente, pouco curiosa, e com alguns pudores ainda difíceis de serem quebrados. Eu tinha plena consciência disso inclusive. Mas minha vontade de agradá-lo entrava em guerra com minha vontade de ver até que ponto ele me aceitaria daquele jeitinho mesmo. Genivaldo soube como aproveitar a vida, conquistou e quebrou corações. Tenho a impressão de que me casei com Genivaldo também porque sinto uma inveja absurda de como ele sempre tinha histórias legais e sabia o que queria. Meu marido já havia me contado muitas histórias calientes da sua vida, não sei como ele teve coragem. Eu não contei nem que era virgem na nossa primeira vez. Era excitante pra mim, de certa forma, vê-lo desconfiado e sem coragem pra perguntar algo a respeito da minha vida sexual. Imagine só, ser enganado por uma virgem depois de tantas experiências. Pelas histórias, dava, inclusive, pra se ter uma noção de quem era a mulher que realmente havia pirado seu cabeção e que infelizmente não deu certo. Talvez, deus tenha me dado um dom também... fazer as pessoas se abrirem pra mim, sem muitos rodeios e como se eu fosse uma porta aberta para que elas entrem, largue seus fantasmas, saiam e me deixem mal assombrada pra sempre.
Não me lembro bem quando comecei a mentir pra mim mesma, mas comecei a me convencer que eu também podia ser a sorte da vida de Genivaldo. Quem sabe eu não era mesmo o que meu marido sempre sonhou. Quem sabe eu não era alguém completamente perdida que ele pudesse ouvir exatamente o que ele queria, o que ele desejava. Pra quem não sabe o que quer, qualquer coisa que vier é lucro? Isso de certa forma parecia ser muita sorte. Talvez, ignorar fatos importantes da minha realidade complexa e da minha falta de auto estima, fosse de alguma forma atraente, fácil de moldar. Minha enorme nuvem negra, nunca saiu de cima da minha cabeça. Eu trazia um quadro feminino depressivo de uma série de tantos faz, perceptivelmente na minha sombra. Não sei bem como poderia ser atraente dessa forma, mas Genivaldo quase me convenceu de que eu era uma jovem realmente sedutora. Demorou algum tempo pra que eu percebesse que existia uma fantasia bem pessoal e traumática de Genivaldo, ao meu redor. Ele sempre foi muito bem tratado e cobiçado por outras pretendentes e tinha um trauma meio maluco que o fazia procurar por alguém que se importasse menos, com todos os cuidados que uma relação deveria ter. Genivaldo tinha muito medo de descobrir que era um canalha eterno. E foi exigente com outras mulheres, mentiroso, e sentia culpas horríveis por não ter feito dar tão certo antes, como dita-se as regras das pessoas boazinhas. A sensação que eu tinha era que Genivaldo tinha me encontrado exatamente como ele queria. Pra ser o homem mais bonzinho possível, pra ser perfeito e nenhuma culpa ser sua de novo. Na hora certa de algum plano urgente que ele tinha, pra vida dele não dar tão errado, caso ele não tomasse uma decisão muito rápida de se aprumar na vida. Genivaldo não queria e nem tinha tempo a perder, pra me enxergar como eu realmente era e ao mesmo tempo via muitas soluções na minha imagem problemática. Por todos esses motivos errados e malucos, construímos uma paixão bem sacana e intensa. Quantos mistérios e jogos de poder cabem no nosso apartamento? Ser um fantoche nunca incomodou Genivaldo, isso era meio impressionante pra mim. Me incomodava ser um fantoche, mas ainda não o suficiente. Eu tinha curiosidade de saber até quando ele realmente iria manter tantas certezas e controle da nossa relação, ou mesmo até que ponto eu seria capaz de me deixar dominar e não demonstrar estar me importando tanto. Eu estava por dentro de tudo, e minha nuvem negra na cabeça inchava a cada dia mais e mais. Eu não trabalhava, mal estudava, e me divertia com a reação dos amigos de infância e colegas de trabalhos de Genivaldo, com a reação das ex- namoradas dele. E com a vontade que meu marido tinha de ser um homem tradicional a procura de uma família e uma história de amor perfeita comigo. Comigo visivelmente arruinada. De certa forma, o desespero de Genivaldo me dava um prazer estranho. Eu tentava pensar nisso inclusive, pra gozar mais rápido. E também nos olhares dos amigos de Genivaldo, do comportamento deles quando eu chegava nos lugares... eu parecia para eles, sagrada e ao mesmo tempo perfeita na minha condição. Era triste e divertido ao mesmo tempo, ver tudo e não transparecer nada. Perceber e obedecer.
Eu era péssima com serviços domésticos, e também não sabia cozinhar. Por mim, o apartamento podia dar bicho. Meu marido nunca fez questão que eu cozinhasse. Ele dizia que gostava de mim do jeitinho que eu era, e acabei sendo desse jeitinho em várias outras situações. Confesso que eu esperava todos os dias, pelo dia em que Genivaldo iria exigir um pouco mais de mim. Durante muitos anos, abri as portas dos restaurantes simples e chiquérrimos que Genivaldo me levava pra comer (de modo que parecia ser qualidade minha as escolhas dos restauranres), com uma imensa vontade de fugir. Depois de discutir por algumas horas no carro, por eu não me atentar nem em escolher o lugar que poderíamos nos alimentar, e quando eu finalmente escolhia, receber seu beijo e cara de apaixonado, por eu ter me esforçado e feito uma boa escolha... Escutei a sugestão de outro restaurante. Mas não é um dia bom para comer frango, ele disse. Tudo revirou no meu estômago. Fui obsediada por uma sensação maldita e corajosa de fingir estar indo no banheiro pra lavar as mãos e retocar o batom, para finalmente pular a janela. Com muita sorte, eu ia pegar o primeiro táxi lá fora, me dirigir a um terminal rodoviário, e fugir do que eu era com Genivaldo. Ainda era tempo de descobrir o que eu poderia ser? Não tinha jeito pra mim com Genivaldo. Eu tinha sorte de ser daquele jeitinho mesmo?