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domingo, 28 de novembro de 2021

Mal assombrada

A saudade não é mais uma coisa boa. Ela invade meu quarto quando ainda estou dormindo, e passeia por ele me observando como se fosse dona dos meus pedaços. As vezes, caminha no pequeno espaço e se transforma em um corpo branco sensível cheio de traços. A cada passo o corpo vai se transformando em algo. Uma árvore negra com raízes tristes, uma coroa sem majestade, caminhos e linhas da vida, um coração que bate desesperado, pêlo de gato, folhas... alguma coisa me diz que tudo aquilo abraçava, dava prazer, acalmava... quando era vivo é claro. Nos cantos das paredes, eu ainda debaixo das cobertas, escuto uma risada rápida e estranha, tampo meus ouvidos e tenho a sensação de que alguém ri da minha cara. A campainha toca lá fora e vem um certo gatilho... que sorte têm aqueles que nunca precisarão se acostumar com a chegada de alguém. Enquanto escrevo sentada, um beijo carinhoso pousa no meu pescoço. É de mentira, invisível, assustador e ligeiro. Paro de escrever, olho para as minhas mãos e percebo cabelos escuros oleosos que não são meus, não são reais. Vou para o banheiro e a porta se abre sozinha ao som de um violão triste cujo a canção nunca para, uma canção de despedida eterna. Ao escovar os dentes, sinto medo de encontrar alguém atrás do espelho, alguém que não me suporta, que saturou e que me quer longe e bem longe de todas as formas e jeitos. Me visto e faço uma prece para que toda aquela assombração desapareça da minha cabeça, para que eu me esqueça de todos os movimentos e retratos, para que Deus nos perdoe por termos nos iludido por alguns breves momentos. Não conseguimos, é isso. Não somos mais capazes, não temos mais destino nem jornada. Acendo uma vela para que nunca mais nos façamos mal, para fecharmos as portas, e se sentirmos algo, caso alguma vez a gente se veja por acaso, para que possamos aprender de imediato a se cumprimentar e guardar o resto com a gente mesmo. Não compartilhar. Nunca mais compartilhar nenhum sentimento, nenhuma dúvida, nenhum desentendimento. De medo em medo, a paz será selada na marra. E os caminhos vão seguir com suas lições silenciosas e seus misteriosos segredos. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O tempo

Meu tempo é demorado, apesar de eu ser rápida em tantas outras coisas. É analítico, apegado, crítico... percorre meus lados e devaneios para compreender o que se sucedeu, para se abrir para uma nova fantasia que agrade meu peito e eu. Ele quer ser demorado para combinar com o que eu quero enxergar da próxima vez. Demorado para doer o que tem que doer. Para sofrer um pouco, para curar outro pouco, para estender... Também não é um novo amor que ele quer ver logo mais, amor ele já teve, ele acabou de ter... ele quer coisas novas, ele é curioso, é mais ele. E ele quer tempo e mais tempo para um novo eu. Preciso ter orgulho do meu tempo, porque ele sempre sabe o que está fazendo. Ele sempre sabe o que é melhor pra mim. Ele não tem medo de encerramentos, de cascas, de embalagens e de fugas. Não se importa se o outro esqueceu primeiro, esqueceu rápido, já está amando e descobriu que tudo não passou de uma ilusão. Meu tempo aprende, sente e é assim... do tamanho dele mesmo. Quer cavar, beber, tratar, cutucar, fazer as contas, tomar remédio... ele não insiste, ele não finge, não dá match, não nega, não suporta, não mente... meu tempo é ele mesmo. Meu tempo é dinheiro, é estrada, é continuar a sonhar sozinha, do jeitinho romântico que eu sou mesmo. Ele quer viajar, tocar o foda-se, chorar independente se está cedo ou tarde. Meu tempo é esperança, uma prece, um capítulo mais estendido. Quem é que tem o direito de dizer como deve ser meu tempo? Quem é que tem o direito de ditar como eu devo proceder? Em quanto tempo é correto para essa gente macia, lebre e esperta, dizer que nem doeu? Meu tempo é meu tempo oras bolas... deixe ele, deixe ele passar, sentir, voltar, regredir, cair na real, ultrapassar, expandir, demorar... Com o tempo não se brinca, não se controla... uma hora eu hei de aparecer tranquila, renovada, com o tempo tudo se tranquiliza, se transforma. 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

|| A cigarra e as garras da ilusão ||

Agachada comendo com o prato entre os joelhos,  uma cigarra veio voando da janela e caiu bem a minha frente no chão. Aquilo mexeu comigo pois não era hora de cigarra cantar ou estar por aí passeando. Não era mais dia, não era tanto noite. Logo, lembrei que elas cantam como você. 

"Um sinal do universo? Será que ela está bem? Será que um dia sentirá minha falta como eu sinto? Será que vai demorar? Quando tudo isso vai passar?"

A cigarra se debatia no chão e pensei quando foi que achei que o amor próprio podia ir embora, quando foi que comecei a deixar de ser eu mesma e me transformar numa mulher que nem eu mesma gosto. Quando foi, meu Deus, que esqueci de nós com aqueles sorrisos encantados das primeiras fotografias e comecei a me preocupar sozinha com a perda e com o futuro.

A cigarra no chão com as patinhas para cima começou a cantar. Eu mastiguei minha comida rapidamente e sem querer viajei para aquele começo. 

Gostei dela quando bati o olho. Lembro que fiquei alegre e olhava fixamente para seus olhos fechados e concentrados na letra da música e no violão (que mais tarde, até foi roubado). Ela parecia triste, misteriosa... isso mexia comigo. Mas também podia ser o dia, eu me dizia enquanto dançava, conversava com minha amiga de infância e corria de um lado paro o outro com as bebidas coloridas. 


Uma outra amiga percebendo que minha felicidade e sinceridade poderia acabar com a noite de alguém, logo descobriu que ela estava acompanhada, que era uma despedida. Eu sorria e pensava que talvez pudesse ser o meu começo, pedi uma foto com ela, tiramos e lhe arranquei um sorriso. Me afastei, fiquei feliz por mais um tempo perambulando, pedi a conta, coloquei os pés no chão e lembrei que o amor não era pra mim.


A cigarra se mexia sem cantar enquanto eu mastigava a comida que nunca terminava. Recordei daquele tempo que me preocupei. Daquele tempo que começou a dar certo e entrei em pânico. Quanto mais eu me perguntava porque gostava dela, menos respostas eu tinha. Vê-la mudava tudo de lugar, acalmava as horas, bagunçava minhas teorias, me fazia esquecer dos problemas do trabalho que estava matando minha saúde mental, me fazia abrir as pernas e também começava a incomodar.  


Ela era despreocupada, lembro das suas sapatilhas de pano furadas, de manchas roxas que sumiam e desapareciam do seu corpo e do seu exame de hérnia no pescoço empoeirado. Ela sentia dores físicas e emocionais absurdas e nem se quer comentava de ir ao médico ou resolver aquilo, também parecia ter vergonha de praticar atividade física. Não pensava muito no amanhã, as vezes me parecia que ela era anestesiada. 


Gostava de cantarolar sem cobrar, achava que por amizade valia tudo. Bebia até o amanhecer sem problemas e gostava de ensaios e mais ensaios e ensaios... muitos desses para shows que nunca vieram a acontecer. Era sua diversão e eu respeitava, até aproveitava para ter um tempo só pra mim. Me cobrou uma vez do porquê eu não participar. Bem, eu não era música, era escritora. Geralmente, escritores gostam de espaços confortáveis para escrever. Também não bebia muito, nem fumava... o que afinal eu ia fazer? Para mim, não fazia muito sentido... mas eu queria estar e marcava presença era nos shows, aplaudindo, curtindo, vendo brilhar. 


Ela era muito sexy tocando seu baixo amarelo também. Eu me recordo de uma foto que fiz dela em cima de um palco, sorrindo para mim e o baixo pendurado no corpo com as mãos segurando um bolo de aniversário que planejei a semana inteira para vê-la surpresa. Eu queria ser inesquecível, marcá-la de alguma maneira. Queria que ela entendesse que cada corda tocada dos seus instrumentos eram também uma batida do meu coração. 


Não sei se ela me entendia muito bem. Achava ela fechada, misteriosa ou como disse acima anestesiada. A impressão que eu tinha é que ela estava acostumada com garotas que a presenteavam com suas presenças em ensaios. 


Isso também me lembra o meu esforço, após trabalhar numa campanha cansativa, para conseguir a tempo, dois ingressos para o show do Roger Waters fora da cidade, porque ela adorava e tocava Pink Floyd. Finalmente ela ia usar sua camiseta surrada da banda, sem que eu tirasse sarro por ela não querer vestir outra coisa no corpo. Hoje fico pensando, sem ela eu teria ido nesse show? Será que ela entendia o quanto me fazia bem, e o verdadeiro significado daquele show para mim?


Tento pensar que eu iria sim. Minhas amigas estavam lá, e eu não tinha medo da minha própria companhia, eu era muito feliz e segura sozinha...eu acho. Tento pensar que iria porque minha irmã e eu íamos a pé para a escola na adolescência, compartilhando um mp3 no ouvido escutando The Wall e debatendo todas as teorias que as músicas poderiam ter. Quanto a ela entender, acho que não cabe mais a mim. Muitas vezes o que imagino ser grandioso, para o outro talvez não significasse muita coisa. Lembranças não marcam por serem caras, por terem demandado muito esforço, por estar fora da cidade. Talvez ela trocaria tudo aquilo e até a minha presença para estar num mero ensaio fumando um. 


"Dividir meu tempo ou entregá-lo em suas mãos? 

Por que quando se vive o amor romântico só parece estar certo se formos um só?" 


A cigarra ainda estava no chão. Fazia um barulho, mas não chegava a ser uma canção. Meu prato já estava limpo, comi razoavelmente bem. Recordei que estar apaixonada é bom, mas é ruim ao mesmo tempo. E como era difícil para mim admitir sentimentos bons e ruins depois de tantos anos sozinha e completamente ciente de quem eu era, do que sentia e do que queria. Eu estava confusa, tentava entender onde havia me metido. Lembrei como me doía o gosto que ela tinha pela casa de outra pessoa. Sentia inveja, ciúmes e não admitia. Parecia ser cedo demais para confessar meu terrível defeito.  


“Um dia ela vai gostar da minha casa também, um dia talvez ela goste das minhas pessoas também...”


Eu pensava em segredo e com medo de nunca conseguir fazer com que ela gostasse do meu mundo como gostava do que ela já estava acostumada. Por muitas vezes achei que ela estivesse perdida, mas quem estava era eu. Me abri com a jovem ruiva da casa que ela gostava de frequentar, e ela me disse que ela era assim e só isso mesmo, com essas palavras. Senti uma maldade, achei que havia algum tipo de amizade. E finalizou dizendo que se eu continuasse ia acabar me estropiando, que ia ficar abusivo. Quanta pretensão dessa ruivinha fedelha! Quem decide se fica e o que vai ser sou eu. Me arrependi de ter comentado algo só porque ela fazia psicologia e me parecia sensata por não sentir absolutamente nenhum ciúmes da minha amada. A jovem ruiva era namorada da dona da casa, e a dona da casa era o antigo, e constantemente presente, amor da minha namorada. 


"Como ela conseguia não sentir ciúmes de uma pessoa extraordinária?" 


Não era cedo demais para confessar meu ciúmes. Hoje eu sei que nunca é cedo ou tarde demais para ser eu mesma. Espontânea, vulnerável, esforçada, errante, ciumenta, humana, intensa, chorosa... Não importa! Se o outro quiser ir embora ele vai. Quanto mais eu guardei sensações sozinha, mais me coloquei no caminho da desunião. Como teria sido se eu tivesse compartilhado com a pessoa amada? Nunca saberei. Quem sabe numa próxima... O que importa é que consegui ultrapassar essa fase...o que importa é que esse amor cresceu muito mais do que eu imaginava. É engraçado... mas eu não sinto falta da nossa história... entretanto, sinto falta do que eu via em você.


Levanto do chão, não tem mais comida no prato, preciso lavar o prato. E a cigarra no chão parou de tentar voar, de bater na parede e de cantar. Também não tive curiosidade de ver se estava morta... tanto faz agora.



quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Peixes azuis

Enfrento madrugadas com pesadelos que me fazem querer encontrar você. Não queria que aparecesse nos meus sonhos porque não parece você. Com a força do meu pensamento, do meu espírito antigo e da minha própria solidão, me lembro que agora só posso encontrar a mim mesma. Há uma luz em mim, uma luz inexplicável e que não sou eu que a vejo, são aqueles que me amam que enxergam e me avisam quando estou cega. E quando estou cega algo me diz que você me vê, e enquanto estas surda eu quero falar. Não tenho medo de florestas sombrias e desconhecidas, eu sempre as procurei, eu sei falar com as árvores e me sinto da própria noite. Mas tenho medo que todas as sementes e frutos para que a floresta cresça e desenvolva firme, sejam de mágoas. 

Tudo segue por um caminho imperfeito, mas segue. Isso me deixa tranquila outrora angustiada. O que poderia ser mais perfeito do que algo que flui? Vou crescendo com alguns espinhos, estou texturizada debaixo das cobertas, das colheradas pouco cheias que me alimento sem fome e lembrando... Lembrando que minha mão está solta, desprendida daquela outra mão que não é mais capaz de me encostar, que me repugna, que não toca para que eu ouça, que se retirou e me entregou a prata com contagem regressiva. 

Na minha mesa é entregue uma realidade que se mistura com o passado e o futuro, uma realidade que eu não tenho controle e nem defesas para observar. Estou no agora, sem forças para correr atrás... mas ainda assim fico desesperadamente analisando, revisando, riscando aquilo tudo para o presente... Cansada eu reflito que só posso me apoiar no presente e nada mais que isso. Cansada reflito que o outro não quer mais precisar de mim. O que será que o manteve até aquele dia? 

Choro ao lembrar das declarações de amor, da rapidez do tempo de tudo mudar, no fundo eu gostava de acreditar que eram verdade, eu me sentia uma rainha. Apesar de ainda não saber qual é a minha linguagem no amor, tenho certeza que não é ouvir frases feitas e exageradas. Gosto mais de atitudes que me acolhem e silêncios que conversam, de arte, presentes ou bilhetes que podem ser eternos. Acertamos algumas vezes. Ainda choro, mas dessa vez por não te reconhecer, por amar sem reciprocidade e por ter que andar em uma estrada que eu sei que é longa e árdua.

Há muitas armaduras, defesas, jogadas, portões e espinhos para que eu consiga me manifestar no teu reino. Quanta tolice a minha... de achar que seria capaz de segurar todas as barras, de mostrar todas partes, de fazer entender todos os capítulos, de recuperar algo que talvez nunca tenha existido para o outro, de perdoar, de sonhar... Será que enquanto eu te fazia de promessa você me fazia de segredo?

Eu não deveria ter agido como encantada. Tomo uma xícara do seu mundo e tem um gosto amargo de que não me cabe de jeito nenhum. Te vejo em passos lentos e conformados procurando não encarar tua raiva, procurando não encarar tua base, teu meio. Me enfias numa rede só de peixes azuis que se movimentam em busca do seu próprio respirar, com medo do que mordeu, caminhando para a morte... uma deliciosa morte que se transformará em fome no prato de que anseia comer, nutrir, comer, alimentar, comer e comer.  

Varrendo a sujeirada eu sangro em minha casa, eu rezo e rezando eu vou tentando cicatrizar. Meu nome circula em bocas estranhas, estou sendo fantasiada de monstro. Exposta sem nenhuma qualidade, sem todas as vezes que acertei, que enxuguei prantos, que lhe dei coragem, que busquei e deixei, que beijei e abracei, que gozei e dancei, que eu quis e quis e quis...

Brinco, quem queres que eu assuste? Sou seu monstro dessa vez. Há quem queres me difamar? Como queres me pintar? Queres me atirar pedras? Queres me atear fogo? Me esmagar? Me morder até doer? De quem estas fugindo? O que tanto aperreou aí dentro onde não posso me apresentar? Quanta guerra inútil... quanta saudade reprimida terei que guardar.

Me deito e tu vais em passos pequenos conseguindo fazer tuas perguntas, descobrindo novos olhares, cantando para outros ouvidos e eu vivo o meu processo, eu ainda preciso de um abraço, eu ainda estou em pedaços por outras razões, eu estou me colando para consertar e andar. 

Percebes? Não tem como nos alcançarmos, o universo é quem diz. Que triste... que desencontro... Vou parando no meio do caminho e tu continua e escolhe tua estrada. Fico te vendo sumir junto com o pôr do sol para depois poder prosseguir sem saber que caminho tomou. Na sorte, talvez um dia possa te encontrar. Agora me parece tempo de deixar ir, de soltar, de renascer. Talvez seja tempo de se desconhecer.  

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Escrever

Escrevo para que o tempo passe, para que no futuro possa ler de forma diferente. 

Escrevo tentando entender minha ações e medos, meus atropelamentos, a vingança do outro passo a passo. 

Escrevo para lembrar que sempre estive sozinha, que estou capenga mas estou viva, que estou tentando.

Escrevo para esquecer quem não me deseja mais, para quem foi embora, quem ficou e para quem me dá um tempo, um tempo para que eu me encontre de novo. 

Para ressignificar uma passagem, para me ludibriar que escrever cura, para entender a lentidão do meu processo e tudo bem se o do outro é mais rápido. 

Pensar em si mesma é um desafio quando você não se encontra mais... por isso escrevo para que eu me lembre que a culpa nunca será só minha, que não é possível ser um monstro sozinha, que o orgulho ferido não me pertence, que eu não tenho medo de resolver cada pedacinho. 

Escrevo para compreender como os sentimentos foram construídos, até onde vai o perdão e a desilusão, até onde consegui plantar e colher. Aceitar o que era do outro e o que era meu. Sorrir quem sabe e lembrar como pude ter tanta coragem... 

de incluir, de ajudar, de mostrar para o mundo, de fazer repensar, de cuidar, de descobrir novos prazeres, de dar uma chance, de perdoar 777 vezes, de não os ter conhecido, de confiar até onde fui capaz, de encarar o meu ciúmes, de pedir por favor, de mudar de ideia, de amar numa linguagem estranha mais que rendeu...

Também escrevo para me assustar e situar. Para colocar meus pés no chão e segurar o choro. Para não segurar também... Para entender que o outro é livre e vai voar, para dizer que ainda amo, mas entendi que tudo evaporou.

Quero escrever mais pra frente sobre os caminhos certos, as escolhas certas, os desafios enfrentados. Sobre deixar pra lá e desfazer o feitiço. 

Escrevo, escrevo, escrevo.


terça-feira, 2 de novembro de 2021

II Encompridando a conversa II

Abrir a porta do defeito dá um medo grande. Quantas vergonhas eu passei por simplesmente deixar a sensação ser maior do que eu e a razão? Ter medo de perder é uma coisa, outra coisa é trabalhar inconscientemente para sentir o medo de perder sempre, até perder. Podes não lembrar, mas não é a primeira vez que tive ciúmes da tua verdade, da tua luta. Pesquisei na memória, na sala do defeito, e eu consegui assistir alguns episódios em que entrei no efeito da péssima e traiçoeira sensação chamada: Ciúmes. Até escrever essa palavra é difícil pra mim, acredite. Admito com um pouco de vergonha que o ciúmes faz estragos e fará várias e várias vezes enquanto não se encara de frente. 

A primeira vez que tive ciúmes de um homem contigo foi quando dançamos felizes naquele galpão daquela cidade. Tudo era tão mágico e divertido, tu girava com tua nuca a mostra e sorria e sorria. Tão bonita, tão bonita... eu também dancei no começo, mas como sempre me cansava primeiro.

"Devíamos mudar de cidade. Já pensou nós duas fazendo aula de dança de salão?", não lembro mais quem disse isso, só lembro que as duas concordavam, que as duas riam.

Sentada e suada de repente eu reparei que aquele homem repetiu a dança mais vezes contigo. Eu observava como quem não queria nada, enquanto tomava um gole de cerveja e deixava a garrafa naquela arquibancada para fazer uns stories do local. 

"Deveria ter bebido água", uma voz me disse na cabeça. 

O homem conversava no pé do teu ouvido e não te girava mais encompridando a conversa e os dois passos pra lá e dois passos pra cá... aquilo começava a me incomodar sutilmente. Como pode um desconhecido se tornar de repente o meu maior inimigo? Quando tu voltou para tomar água toda linda e sorridente, me contou o que ele tinha perguntado sobre nós, o que tinha falado, o que tinha proposto. Era só um macho comum encantado com a beleza de duas mulheres comprometidas, achando que poderíamos ser sua fantasia no passo final da dança. Eu mal te escutava direito, deu pane no sistema... Que audácia, que palhaço, cretino, imbecil, que machismo... Mas quem ele pensa que é?! E com raiva daquele sentimento que me consumia, minha cabeça saia fumacinha, ao mesmo tempo que eu sabia e não admitia que eu pudesse estar exagerando e agindo como possessiva. Reagi culpando você. 

"Por que você falou de nós pra ele?", que covardia a minha lançar essa pra tirar o teu sossego. Uma pergunta que obviamente foi feita para acabar com a noite e alimentar uma história que só estava na minha cabeça.

Será que ela havia deixado algo no ar? Sentido interesse? E com raiva e sem escutar meu coração, fui até me esquecendo que te conhecia, que você estava lá comigo, que você só achou graça daquilo, que você era adulta e sabia se defender e resolver essa e demais situações que obviamente poderia acontecer mais vezes. De forma infantil e lamentavelmente insegura achei que aquele homem poderia levar toda a minha glória e histórias com você. Ridículo não é mesmo? Que autoestima baixa do caralho eu devo ter. Por que diabos eu estava dando tanto importância para aquilo?! Quanta maluquice fui capaz de criar em pouquíssimo tempo meu Deus.   

Preciso mesmo escrever minhas fraquezas nesse momento? Me expor ao ridículo me deixa um pouco apreensiva. Escrever... de alguma maneira eu sou boa nisso, escrever e tentar aos poucos me questionar até entender. Quem sabe lembrar das minhas qualidades quando o ciúmes vem não ajude. Sou importante e interessante para mim? E para o outro? Depende de mim. Se perder e ficar confusa quando o ciúmes chega é só um sensação. Só uma sensação que precisa ser vigiada com cuidado. Afinal de contas amar deve ser tudo, menos vendar os olhos, tampar os ouvidos e apontar o dedo para o outro. 

Agorinha me recordei que em outro lugar de dança também tive pane no sistema quando tu saiu da ala fechada para a ala aberta com o amigo do meu primo pra fumar lá fora. E também quando dançaram bêbados, enquanto eu já havia chegado ao meu limite, e estava sentada. 

"Eles tem tudo a ver um com outro. Já era! Eu nem fumo, eu mal bebo", espirocava e queria ir embora, e saia na frente, mantendo fogo nos olhos. Mas qual é o problema mesmo de ir embora e deixar que o outro fique? De perguntar se está acontecendo alguma coisa? De segurar a própria onda?

De volta ao xilique do galpão, lembro de uma voz sensata na minha cabeça me perguntando: "Por que não admitir que estou com ciúmes? Por que estou esperando o outro colocar um limite para finalizar essa babaquice?". Fomos embora tristes aquele dia. Uma discussão descabida que foi só mais uma dentre várias que colecionei sem perceber. 

Hoje escrevo isso para me lembrar como poderia ter sido, se eu tivesse aberto a porta do defeito e tivesse tido coragem de me enxergar, de querer te ouvir direito talvez... Eu poderia ter lidado com as sensações de outra forma. Sem perguntas, sem acusações, de leve fazendo um draminha para arrancar uma risada ou uma certeza boba da companheira. Me disseram também que uma estratégia simples é beijar imediatamente o outro. É engraçado como nos esquecemos da importância e poder dos carinhos para não darmos o braço a torcer, como se o outro tivesse culpa, como se não fossemos capazes de interromper que a erva daninha do ciúmes cresça.

Quem precisa crescer agora é o amor próprio, a segurança de enxergar o outro como ele é, como ele dá conta de ser. Nunca vai existir respostas e atitudes perfeitas para perguntas que não procuram realmente a opinião do outro. 

É preciso ter coragem para enfrentar o amanhã independente de estar pronta, confusa ou distraída nas armadilhas da vida. Ter coragem de se perdoar, de se afastar, de se desligar e de se enxergar um pouco vulnerável... Quando foi que eu comecei a temer a minha própria companhia? 

Quero entrar e sair da sala do defeito com lucidez e não temer de verdade estar sozinha.