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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Despeito

Vi a foto das pernas de vocês embaraçadas, ainda que não fosse de agora foi possível sentir uma agulha perfurando meu coração vagarosamente. Ao mesmo tempo, também senti uma felicidade estranha e intrínseca de saber que um dia tu pareceu muito feliz e completa com outra pessoa. 
Será que eras mais feliz sem mim? E se tu fores apenas isso mesmo... Pernas embaraçadas em lençóis simples, alma leve e casa alugada?
Eu sou tão complexa, raiz e asa ao mesmo tempo, confusa, pesada, chorosa, medicada... Sinto outra  agulha no meu peito. Uma agulha secreta que me sangra ao perceber o quanto talvez tu a amou, o quanto fizeram amor, o quanto tentou esquecê-la em outras bocas e corpos ou mesmo o quanto foi capaz de amá-la sem ela ser grande coisa... ela sendo apenas ela mesma. Triste, rouca, fedendo a cerveja. 
Sofro estranhamente ainda que tu esteja comigo, nesse tempo do agora. Já passou, já passou, eu me digo. E aí é como se eu fosse tu, por alguns instantes. Recebo a notícia de que minha namorada amava outra garota, sinto como se meus amigos que tivessem desaparecido, e então entendo como uma identidade pode se perder a cada vez que um amor decidi ir embora. Sou tu por alguns instantes, ou é a vida que é clichê quando se trata de relacionamentos? Afinal, ninguém imagina sensações tão bem e nem entra na vida do outro com tanta empatia, sem entender do que realmente se trata.
Será que já chegamos a fase de que somos apenas uma farsa cheia de lembranças vibrantes? Será que é confortável estar comigo? E se eu estiver doente e estiver te adoecendo junto?
E se tu não tiver nascido para as minhas pressões, rotina, meu fracasso e as tantas cobranças e insights sobre passado, presente e futuro... E se eu for um porre desvendada? Me preferes nua e de pernas abertas do que falando, reclamando e dormindo do teu lado?  
Por um tempo, pensei ter sido a melhor, mas eu só quero ser a melhor e mais amada. A mais apaixonante,  a que te faça gozar, a mais preocupada e familiar... Desde o começo era por nossa profunda intimidade que eu almejava. Queria te ter aos meus pés, nas minhas mãos e no meu abraço. As vezes percebo meu ciúme e quero que tu tentes me explicar como ela não tem mais graça, mas cada vez que isso acontece, mais tenho certeza de que é do simples e não do complicado que talvez tu goste. Você nunca precisou admirar ninguém para gostar. Eu sim. O que não quer dizer que tu não goste do complicado ou não admire. Talvez, tu goste tanto de mim que até da um jeito de usar as palavras certas pra tentar me convencer de algo. Palavras mais racionais. Mas eu sei, você sabe também, tu é toda sentimento. E eu? Um quebra cabeça chato e interminável ?
Dias atrás furei mais uma agulha no meu peito e me perguntei se tu gosta dela ter percebido que foi apagada, e me pergunto mais uma vez se ela não pensou que foi uma ordem minha. Tu disse que acha que ela pensou que foi ordem minha, furei mais uma vez meu peito porque acho que gostou disso. É que... ainda que seja uma mentira, meu bem... tu não fez questão de desmentir! Só não te esquece que quem não gosta mais, não tem medo de avisar que apagou porque não vê mais significado. Só não te esqueces que preferir que ela pense que tu é conduzida, ordenada, comandada, do que livre e responsável pela mágoa e saudade mal resolvida que as arrodeiam, quer dizer muito mais sobre vocês e não sobre mim. Tenho ciúmes... mas o que importa afinal? Foi por vontade própria que tu apagou. 
Hoje fiz contas, e perfurei com mais uma agulha quando imaginei alguns dos teus choros. Alguns deles teriam sido por ela? Pelo aniversário dela que não foi convidada? Penso e repenso, e se ela não tivesse rompido? Ainda estaria tu lutando pra ficar junto? Teríamos nos conhecido? Algumas vezes tenho no meu íntimo que tu não desiste fácil quando ama... Se dependesse de tu e apenas tu...teríamos nos encontrado?! Ah, suas belas pernas entrelaçadas com as dela e não com as minhas...
Por que de repente sinto que são tão parecidas? Tenho ciúme... E se forem almas gêmeas? Suas fotos de céu, natureza, poucas selfies e um carinho imenso por plantas e animais... ela também o faz. Será que tentas encontrá-la em mim? Não... não pode ser. Como eu detesto receitas e lembranças de outros relacionamentos. Queria que todas as datas fossem nossas.
Furo-me mais uma vez, e imagino antes de estarem juntas, depois de estarem juntas, enquanto estavam mal ou quando apenas tu, e somente tu só, sofria... Quero abraçá-la nesse momento. Te mostrar as coisas! O que será que dá mais resultado? Parecer ou conhecer o ser amado?
Tenho medo que seja parecer. E será que são tão parecidas ou querem se parecer? Parecer com o ser amado faz de alguma forma com que o ser amado note, queira voltar, curta ou nem que seja as vezes, fique sem parecer querer ficar. 
Mas que bobagem tantas divagações... Não quero mais alimentar tantas sombras e dúvidas malditas. Retiro agora todas essas agulhas do meu peito. Respiro, bato uma, duas, três vezes e sangro invisivelmente bem no meio. 
São minhas perfurações, apenas minhas. Minha carne se junta novamente, se regenera em meu peito mais rápido que todos os caminhos que fiz para quase esquecer minha presença verdadeira no capítulo atual da tua história... Amo-te e consegui. 
Sou eu que estou embaraçada em ti. Complexa, pesada, imaginando nossa casa por aí. 
    

domingo, 2 de dezembro de 2018

Um galinho no meu peito

Calço 37, ás vezes 36 e diferente do que o Raul canta, o Gallo nunca interferiu muito no jeito que eu gosto de ser. O Gallo cruzou uma rua em 1988 e minha mãe era linda... continua. Hoje, o Maurícios Bar, me disseram que agora é uma igreja. Foi onde eles se interessaram pela primeira vez. "Eu não gosto de mulher bonita", ele disse sem nunca ter chegado em mulher feia. E minha mãe nunca mais foi a mesma. Começou quando eu era pequena. Para todos os lugares que eu ia e vou, aparece um galinho que canta e acorda primeiro do que eu, bem aqui... dentro do meu peito. Meu coração o carrega sem saber como foi que ele chegou. Desde pequena me incomodo por saber que não controlo essa ave que habita em mim, por saber que é mais forte do que eu. Ocupa um espaço maluco sem permissão. Há uma briga misteriosa entre mim e eu, por eu não manter esse controle. Quando estou longe, ás vezes, a ave aparece do lado do meu travesseiro. Eu me assusto e ela some. No balcão dos bares, no ombro de desconhecidos sonhadores que conheço em conversas aleatórias. Nas outras cidades, e na letra de todas as músicas e poesias que eu não conheci com ele. Selvagem e sem sossego, o galinho me trás com seu olhar, uma bomba de melodramas, meus limites e segredos... Eu já desisti, ele nunca há de ir embora do meu peito. Pergunto as entidades, por quê?! Porque há vinte cinco anos eu ainda me pergunto se foi ele, se foi ela, ou se tudo não sou eu e a rua que ele cruzou. O fato é que o Gallo cruzou uma rua em 1988 e desde então, corre pelas minhas veias. E depois disso um galinho, dentro do meu peito. Ele não quer voar, quer aparecer. Eu quero voar, mas sempre estou de volta. Quero voltar, mas sempre estou voando. Tem horas que eu só preciso atacar... Mas a verdade liberta, devora meu estômago e levanta todos os pêlos do meu corpo. Agora eu aceito. Demorou um tempo, mas eu aceito. Não quero mais sentir medo. Cante eternamente pois então, estanque meu peito... O amor sempre foi muito mais forte do que eu. Que o Gallo continue cruzando ruas, agora é minha vez de atravessar também. Quero ser muito. Muito mais forte do que eu.

Labirinto

Procure se governar, compreenda seus limites e falhas como quem mora dentro de si mesmo, e não dentro de roupas e cosméticos que querem te melhorar. Eles vão te fazer acreditar em várias coisas... se conheça, para saber diferenciar. Inclusive você pode até se sentir louca, frágil, mas sempre vai alcançar outros meios de se sobressair, porque sempre tem outras alternativas... você sempre soube, você nasceu sabendo, esse sistema é furado, eles não veem a hora pra que você colabore, e te cobram, te alimentam, te envenenam...vão te enfiar milhões de instituições, cuidado. O interesse desses caras ultrapassa gerações, eles sabem muito bem como funciona o mundo, e enquanto você não souber quem é você, enquanto você não souber do que gosta e no quê acredita, eles vão sugar toda a sua energia num desperdício triunfal do que poderia ter sido boas descobertas. E cheias de defeitos, suas instituições protegidas de pessoas que acham que sabem de tudo, vão te fazer acreditar direitinho que você precisa engolir, que você precisa mastigar sem vomitar (e sujar tudo!).
Seleciona, expressa, procure a arte, guarde a gasolina pra correr ou atiçar fogo, promova o escândalo reprimido, mas por favor... nunca decore. Não decore, e chore. Não decore e ore. Não decore e faça. Eles vão querer que você decore o tempo todo, eles são súditos idiotas, respiram aparência, prometa que será uma inconformada, porque te manterás viva pela revolta que subversiva, te fará amar e odiar tudo, em frequências de ritmos que eles não podem escutar, em frequência de ritmos que eles se acostumaram a não aumentar o volume. Há tanto tempo eles não podem mais sentir a cidade porque acham que a nossa língua é suja, eles nos chamam de imundos, não escutam a própria respiração, eles não podem perceber que alguém se inspira, eles não podem inclusive sentir que alguém torce pra que todos se governem um dia. Todos minha querida, todos nós dormindo ou acordados temos um coração amaldiçoado, um coração que ainda dita que tudo está errado. Não tenha medo, você não precisa ter medo de ser livre.
Vá com eles, mas não seja como eles. Não repita. Não pense.
Resista! As regras existem para que alguém venha quebrá-las também. De vez em quando pra manter coragem, não obedeça. Por favor, repense e não aceite todas as coisas erradas. Não se renda. Você também nasceu pra ouvir o barulho do vento.
Escute o barulho do vento pelo menos uma vez na sua vida. Há milhões de bactérias, você não está sozinha... conviva com as pessoas que se preocupam com mais coisas que a soma de números em papel.
Demonstre! Aqueles livros da biblioteca não foram lidos por todo mundo da sua casa, e nem das instituições, ninguém sabe, abra e grite, abra e absorva, abra e vomite! Grita mesmo, porque o mundo não é deles, o mundo deles é limitado, vazio e está em torno de coisas tão materiais que tornam seus sonhos superficiais e antiquados em nome de uma modernidade que eles nunca vão alcançar dentro de alguma alma. Não queira ser extremamente infeliz como eles, porque eles não vão saber e nem procurar saber se existe outro modo vida, não vão correr com os cadarços desamarrados e não vão registrar nada, mesmo caindo em todas as esquinas. Eles querem ser limpos e corretos, como muros brancos, bem brancos ao redor de todas as escolas. 
Não entendo porque tu aparece
De um lado me queixo, 
de outro entendo...
Me entendo naquele tempo
Não sei quem eu era
Não me lembro como fui
Mas ainda sei o que eu sentia
Isso, nunca mudou.