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sábado, 30 de janeiro de 2010

Olhos fechados.

-Nem aqui mais.
-E lá?
-Lá também não.
-Então onde?
-Isso que eu queria saber...mas se bem que ninguém disse que eu ia me sentir a vontade em um lugar para sempre, né?
-Sabe o que eu acho? Agora só...só quando for casamento.
-Hãm?!
-É. Ai será a sua casa, seus...
-...Tô com sono.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Fedífrago

Encaixando a chave do carro, pensando se deveria mesmo chegar e entrar decidida na recepção e seguir depois para a sala, passou a marcha pensando se não deveria ir decidida a recepção e cancelar tudo destinada a ficar sentada na praia observando o mar.
Foi saindo do carro seriamente, e antes de entrar colocou os óculos escuros e olhando para o retrovisor passou o batom concentrada. Estava de vestido preto, reto até os joelhos, tudo bem escondido, mas a cintura era visível e de uma certa maneira ficou até elegante, para quem parecia não estar interessada em estar nada.
-Pode seguir à direita, isto é, se for das 17:30?
Disse um secretário bonito e perfumado parecendo estar apressado.
-Eu mesma.
No corredor, só se ouvia os sapatos, e entrando deitou-se no sofá, depois dos bons modos claro, e quando o doutor pegou o caderno, ela foi falando sem perguntar se podia, e sem esperar uma pergunta:
-O universo da minha cabeça e eu mesma com mais ninguém envolvido nisso, sofre de duas coisas: Traição e dúvida. É meio confuso de explicar, por isso eu prefiro não sair falando, mas eu penso, porque pensar para mim, não precisa de muita explicação.
Ele foi anotando, e com certeza deve ter anotado a pressa, a maneira de desabafo, e como ela não tirou os óculos escuros naquela sala amarela.
-Penso que existem dois tipos de pessoas. As seduzidas, o próprio nome já nos remete que se seduzem, e as pessoas sensatas, que não se movem por qualquer ladainha...ladainha não é gente...
Fez uma pausa bem humorada, o que deixou o doutor incerto, ela ria dela mesma ou tinha direcionado o comentário para ele sorrir também? Ela conversava só olhando para o teto.
-Para o contexto doutor, acrescentemos as ideias, que servem para serem escolhidas . E com a sua ideia, não sua, e sim escolhida, porque as ideias tem donos de muito séculos atrás, você se orienta, e pensa, e concorda, e discorda.
E juntou as mãos ficando calada por um minuto que pareceu cinco.
-Comecemos do começo, do começo mesmo, de quando começaram a perguntar: "De chocolate ou de morango?" para mim. Sabe doutor, me divertia em escolher, dava uma sensação na qual me tornava de súbito muito importante, desconfio até, que quando eu brincava só tinha graça se as crianças de quando eu era criança, fizessem a pergunta que definiria o destino de cada um: "Vai ser do mal ou do bem, hoje?"
E virou a cabeça para ele pela primeira vez, notando a gravata cinza e admirada em como ele conseguia estar de pernas cruzadas com aquela barriga de desenho animado.
-No exato momento que eu saia de cima do muro doutor, minha cabeça me transportava para um lugar e um lado. E não sei se cheio de cavalos e bandeiras, mas a sensação era essa! E se eu gostasse desse lugar, só pairavam as ideias desse lugar, só eram confiáveis as pessoas desse lugar e lado, e eu tinha que lutar e ser fiel ao lado que escolhi.
-Hum...como se estivesse seguindo uma...ideologia?
Perguntou meio desconsertado, o que aparentou que esteve o tempo todo querendo interagir com a paciente sem querer bloqueá-la.
-É doutor, muito tempo depois eu descobri o que era Ideologia.
Disse, parecendo não estar muito interessada no que ele perguntava.
-Então, eu podia pensar que era uma pessoa seduzida. Já que para mim o importante era estar num lugar, ou lado, e ser disciplinada nas teorias impostas.
-Nas teorias impostas?
Perguntou já não mais desconsertado mas sim interessado, arrumando os óculos que decaiam pelo nariz.
-Por exemplo doutor, se o comunismo era bonito, eu era do comunismo. E se eu descobrisse que o sistema era cheio de contradição, eu preferia tampar meus olhos e fingir para continuar, do que aceitar o erro e mudar de posição.
-Hum...
Anotou quase sorrindo.
-Mas com o tempo, fui percebendo, que apesar de eu me entregar por inteira a ideologia que estivesse, se aparecesse outra melhor, com ideias mais mirabolantes, não tinha jeito, eu ficava calada por uns dias, repensava tudo... e traía todo aquele mundo! Me transportando para outro, voltando a me imaginar em outro lugar, defendendo outro lado, e amando tudo de novo.
-Sentia tédio?
-É doutor... muito tempo depois eu descobri o que era tédio. Logo depois, começou uma irritação. É num dia de sol, senti profundamente que eu não escolhia nada, a não ser o que meu lado quisesse, e que a sensação de ser subitamente importante ao tomar uma decisão, não era tão minha assim, e sim do lugar ou lado que eu estivesse.
-Hum... Como se você fosse só mais um membro da ideologia?
-Nem isso doutor, era mais como se eu fosse usada para que a ideologia vivesse.
-Se sentiu enganada?
-Por que?
-Não sentiu?
-Pareceu? Mas não, a traição que eu falei que sofri, ainda não começa aqui, mas eu concordo que talvez eu tenha ficado meio frustrada mesmo com isso...

-Hum...
E anotou, quebrando a ponta do lápis e tirando outro rápido e afiado do bolso.
-Doutor, vou pular das ideias chocolate ou morango, para as mais centradas, até porque, nunca vi ideologias darem importância a chocolate ou morango, vamos falar das ideias que elas dão valor, como casamento, escola, aborto, eutanásia, crenças, partido, educação, amor, sexo, morte, vida, só para o senhor se atear e não pensar que eu sou confusa.
-Hum...
Anotou quase sorrindo outra vez, o que pareceu que a muito tempo não encontrava pacientes tão diferentes.

-E meu soldado disse doutor...
Ele arregalou os olhos, ficou com medo de não ter prestado atenção em algum detalhe importante mas a interrompeu ansioso pelo o que ela contaria:
-Como? Desculpe, seu soldado?
-É doutor, metáfora.
-E...o que significaria?
A mulher ajeitou o vestido com dificuldade, já que estava deitada naquele sofá e não queria parecer promiscua, virou para ele, pois falava tudo olhando para o teto e ainda com aqueles óculos escuros, e imitando uma voz masculina, ela disse:
-Sen...tido!
O doutor levou um susto, ficou confuso, e ela voltou a olhar para o teto sorrindo, e disse:
-O soldado inventado que me diz doutor, o que faz mais sentindo?
O doutor ainda abismado, ficou impressionado com a metáfora da mulher,e ainda um pouco indignado, ele jamais tinha sido pego de surpresa com imitações daquele nível, só com choros desequilibrados.
-Foi ai que foi traída? Não encontrou sentindo nas ideologias?
-Aos poucos o senhor me entende doutor, mas ainda não foi aí. Como eu disse, eu me declarava seduzida, me declarava tola e preguiçosa.
-Por que tola e preguiçosa?
-Porque eu negava os defeitos da ideologia que estivesse para continuar, coisa que pessoas sensatas não fariam.
-Mas você não disse que depois repensava e trocava suas ideias?
-Aí é que está.
-O quê?
-Talvez eu tivesse medo de chegar ao ponto de ter passado por todos os lados e lugares e ter concluído de que para sempre... em nenhum ideologia eu estaria.
-Está me dizendo que você tinha medo de viver todas as ideologias e no final das contas não sobrasse nenhuma agradável?
-Sim.
-Isso é sensato. Se fosse uma pessoa seduzida, não trocaria, continuaria nas que achasse errado por paixão, não acha?
-É aí que está a traição.
-Desenvolva...
-Eu não sei mais se sou uma pessoa sensata ou seduzida. Descobri que sou uma pessoa sensata, mas que talvez, no fundo eu só queria ser uma pessoa seduzida, entende?
-Uau...
Admirou baixo, e logo disfarçou com lápis e papel.
-E a dúvida?
Perguntou parecendo um fã.

- Penso se tudo isso é um defeito, me punindo através da minha estima propositadamente, e ás vezes até na frente de gente.
-Hum...
-Ou se não tenho culpa nenhuma de ser assim, e só não deveria pensar nessas coisas.

-Pensar nessas coisas te incomoda?
-Não. Incomoda saber que só eu penso nessas coisas. Ou que ninguém entenda se eu contar.
-Você já contou para alguém?
-Não. Mas vou escrever, talvez eles entendam pelas metades.
-Por que você veio aqui?
-Por que? Só para falar dessa traição e dúvida. No fundo eu já sabia que era sensata, mais queria ser seduzida. Esperava saber porque eu quero ser seduzida.
-Hum...talvez você não consiga lidar com a falta de sentido que não encontra quando deixa de estar seduzida.
-É. Gastei cem pilas com o que estava escancarado, mas o que eu faço se eu quero ser seduzida e não sou?
-Podemos trabalhar nisso. Está disposta a voltar e a querer lidar com isso?
-Acabo de me lembrar da morte doutor.
-O que tem a morte?
-Esqueci de lhe contar da morte. Na verdade doutor, eu já pensei em tudo...
-Tudo o quê?
-Eu não vou chegar ao ponto de ter vivido todas as ideologias possíveis e sentir a desagradável sensação de nenhuma ter me conquistado para sempre, porque a morte me levaria bem mais cedo, já que a quantidade de vida que me resta é desproporcional a quantidade de ideologias que ainda me restam nesse planeta.
-Então vai lutar contra sua sensatez e continuar a querer viver a pessoa seduzida enquanto te houver vida?
-De manhã ou de tarde? Porque eu trabalho.
-Como?
-Eu precisava aceitar essa traição, dúvida e...tédio.
E jogou os joelhos do sofá em direção ao chão, passando as mãos no coque, procurando alguma falha, depois saiu em direção a bolsa pendurada na parede, arrumou a calcinha embolada antes de puxar a bolsa, contou o dinheiro baixinho, o que com aqueles óculos parecia uma mafiosa, deixando em cima da mesa, reparou os livros da estante, e foi saindo. O doutor descruzou as pernas, e não sabia o que falar, ela se virou, deu um sorriso como se fosse o aperto de mão de despedida e abriu a porta, entretanto, antes que a porta fosse fechada, abriu de novo, sua mão apareceu como se estivesse impedindo um desfecho trágico, ele percebeu as unhas bem pintadas de escuro, o que deu um ar meio tenebroso, e ela disse:
-Como é seu nome mesmo doutor?
-Aristissabal.
-Obrigada, doutor.
E a porta se fechou só se ouvindo o barulho dos sapatos no corredor.


(Fedífrago segundo meu Houaiss significa desleal, traidor, que rompe um tratado, um acordo, pérfido.)

Gorda porque quis.

Passa o pente na barriga, arranhando só para arranhar mesmo, e pergunta sem neurose, só por que ele estava ali calçando a meia concentrado para o segundo dia de aula,
-Dudu, acha que estou gorda?
Ele olha nos olhos, olha para cima, e responde.
-Bom, sim.
E antes que eu me admirasse, calça a outra meia, me olha sério e responde:
- Mas sabe? É só porque você me disse uma vez que era seu sonho.

(Fernanda já inventou um sonho desse para Eduardo mesmo, mas nem se lembrava...e Eduardo sabe lidar com as mulheres.)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Quando a companhia chegar.

Eu espero que a companhia de dança não demore a chegar. Espero desde que nasci. É por isso que eu tenho que ser boa na dança, ou bonita, para não ter nenhuma desculpa, assim, serei encontrada para todo sempre. Para cada turnê, por cada lugar. Talvez eu não esteja fugindo com eles, talvez eu esteja fugindo de mim, mas isso nem importa, o que me importa mesmo é eu não dar nenhuma explicação, e deixar um único bilhete com letras recortadas de jornais, para que minha letra não seja interpretada, e sem meu endereço, e sem foto de despedida, porque assim farei com que se esqueçam mais rápido de mim. E nesse nunca mais ver ninguém, ou nunca mais voltar, apesar de que íntrisecamente eu sinto que será preciso um dia voltar pela dor ou pelo amor, eu vou continuar, e viver miseravelmente com a arte. Quem sabe, viver somente pela arte. E sobreviver como todo mundo sobrevive, de saudade.
Acredito que haverá pessoas de histórias de vida diferentes, de histórias de fugas diferentes, ou as sem oportunidade, que já nascerão nessa fuga. Dentre eles, uns gostarão de mim e outros nunca vão me aceitar, mas me suportarão pelo tempo, e um dia até me pedirão favores importantes, o que não signifique que por fim deixarão de transparecer o quanto eu nunca serei importante. Isso não será preocupante, em todo lugar isso acontece, a companhia é só mais um desses lugares. Os experientes querendo que os novos sejam frustrados antes do tempo, e os jovens querendo que os velhos sejam esperançosos depois do tempo. E o mais engraçado é que só assim tudo consegue andar para frente. Não posso reclamar, porque serão da companhia, o que implica que todos somos um, e um somos todos, inclusive! Deve existir mosqueteiros lá! Não posso reclamar em segundo, porque serão a minha maior companhia. Desconfio que os espelhos do camarim serão amaldiçoados, o ar melancólico aparecerá por qualquer um que se olhe, mesmo que estejam apenas procurando a perfeição do novo espetáculo. E quando os artistas, ou quem quer que esteja para subir no palco já nem queiram mais procurar pelos espelhos, ou por eles mesmos, e estivermos muito apressados e sobre muita pressão, eu serei chamada para ajudar, já que pretendo ser uma das primeiras a estar pronta para dançar, por conta da minha empolgação jovial de estar vivendo um sonho, pintarei os olhos das bailarinas amigas, percebendo sempre alguma coisa perdida, mas não ousarei em perguntar. E até nos palhaços, que me exigirão expressão nos pincéis e cores, tornando-se chatos, eu perceberei o fingir tanta alegria. Aposto ainda, que vai haver uma vez e um insuportável. Um que conseguirá perturbar meu juízo só piscando. Todo colorido, ele que vai me dizer, depois que eu, cansada, querer irritá-lo falando da falsa alegria, que eu sou muito juíza, que a alegria dele não é falsa, e sim precisa, e que chatice não significa que não há verdadeira alegria, mas sim disciplina. Me ensinando muito sobre todas as técnicas que eu não conseguia ver, e como piada, ele vai despertar minha falsa ideia, de que tudo que está por trás do brilho é falso, e me corrigirá dizendo que a verdade é que é arduamente trabalhado, e parece falso porque todos ficam sérios, e me explicando sem eu perguntar, dirá que seriedade ajuda.
As cortinas se abrirão, a música vai soar, e sem observar cada um do público, porque não dá tempo, eu e minhas companheiras dançaremos iguaizinhas até o final, e de imediato, receberemos assobios que me farão observar tímida e sorridente meus próprios pêlinhos dos braços subindo, e só não verei os das pernas, por causa das meias, meias que eu mesma vou lavar! E que escondem o quanto somos humanas, porque lá em cima, não queremos ser assim, queremos ser mais!
E quando fizermos a pose de despedida, gritarão, e viraremos milhares de fotografias, que jamais vamos ver, entretanto viraremos, e seremos eternizadas e para sempre, se não desbotar, papéis felizes.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Chegou.

Só aparece quando quer, e é incrível como nunca é agradável. Sempre se senta em cima da caixa preta, sempre com um vestidinho folosado, claro, meio transparente, dando aquele ar de ser a criatura mais livre de todas. Descabelada, com as pernas mudando de posição o tempo todo. Não gosto dela por causa do jeito despreocupado, é meio contraditório já que ela é inventada e não passa da minha: Preocupação. Materializada, invadindo meu inconsciente sem permissão.
Me dizendo..."E aí fofa!?"

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Quando era eu e o Anderson.



Tínhamos uma dívida muito grande. Antes, muito antes de nos conhecermos como preferidos, no entrosamento dos primos horas antes da viagem para a fazenda, eu quebrei a perna da sua única ranger rosa. E num impulso assustador, você tomou todos os seus bonecos das mãos das meninas, como se todas tivessem culpa do meu estrago, e disse que não queria mais brincar, saindo em busca da mãe. Fiquei abismada, e também de impulso, me culpei, eu nem era acostumada a brincar com meninos, para quê fui me meter nessa? Depois, resolvi me defender e me argumentei que se eu fosse você, teria disfarçado o desagrado. E para ser mais estranho, você não quis viajar na presença dos primos na carroceria, foi na frente com vovó e vovô, no colo de algum caronista, e disseram que você chorou por causa da ranger. O que foi muito chato para mim. Lembro que na fazenda, brincávamos todos de tudo, ríamos todos de nada, e que a noite você vinha com seus bonecos, e só tocavam neles: Você, seu irmão e com muito sacríficio e argumentos de confiança, a Duda.

Dias depois, num lanche na casa da Duda, vocês (meninos) foram. Não me sentia muito bem, e parecia-me que vocês, agora, iriam participar de tudo. Brincavam tão diferente! Mas eram legais. Entretanto, lá vinha você, com seus bonecos outra vez, desta vez eram outros, de desenhos que eu até gostava, e se excluindo de todo mundo e negando todas as brincadeiras, foi para copa brincar sozinho, fazendo a mesa de cenário.

"Quanta marra!", me dizia odiosa, e me perguntando como conseguia ser tão... você.

"Por que ele não quer brincar com todo mundo Duda?"

"Porque ele quer brincar sozinho! ...Vem Nanda!"

E saiu saltitante em busca dos que queriam brincar com todo mundo. Me culpei. Podia ter perguntado porque ele queria brincar sozinho em vez de ter perguntado com todo mundo. Eu fiquei curiosa, e tomava água de vez em quando, para passar pela copa e poder ver o que é que esse menino inventava. Uma, dessas vezes, a Duda passou por lá e fez participação especial na brincadeira dele, o fazendo rir, mas foi questão de 10 segundos, e saiu correndo. Coisa de...imitar a voz de um boneco, mexê-lo e sair correndo. Jamais faria isso, até porque eu aposto que ele nunca ia esquecer que eu era uma aleijadora das rangers rosas. Não lembro se alguma coisa sua caiu da mesa e eu peguei, eu só lembro que eu acabei ajudando em alguma coisa, e quando vi estava sentada de frente, olhando para a brincadeira.

"Você não vai brincar."

"Não, eu vou só olhar."

Fiquei sentada, de frente para ele, observando os bonecos no meio, sem poder tocá-los. E prestei atenção na história que ele inventava de bico calado. Achei engraçado, existia tanta falta de sentido na brincadeira dele e tanta mistura com as coisas da TV, que o achei um tanto influenciado. Mas, não deixava de ser uma brincadeira engraçada. Eu não lembro se foi um vaso de flor que estava na mesa, ou um controle de televisão, eu só lembro que esperei a deixa e mexi um desses objetos fazendo uma voz sinistra e entrando no contexto sem que ele percebesse. E ele me deu corda, e assim eu já estava brincando. Pela primeira vez, eu senti que ele era uma pessoa que tinha o mesmo nível de imaginação fértil que a minha, e que podíamos inventar mil coisas sem nos esgotarmos. E não sei se ele achou tudo isso de mim, mas eu lembro que em um momento ele acabou colocando um boneco na minha mão.

"Aí, finge que você não sabia que eu tinha poderes."

"Tá."

Perdi a aposta. Eu não era mais a assassina da ranger dele. Nos transformamos de primos para amigos primos, e posso me lembrar que inventamos durante alguns (e melhores) anos, mais de mil "eu sou isso e aquilo, eu tenho isso e aquilo, eu posso isso e aquilo". Chegou ao ponto que eu até ditava!

"Eu sou uma bruxa de cabelo vermelho."

"Ai mas tu tá chata com esse negócio de bruxa."

" Tô mesmo."

"Mas a gente tinha combinado de brincar de espião!"

"Não. Eu sou bruxa agora."

"Tá, então eu sou seu amigo bruxo detetive."

Antes de eu incutir com bruxaria, nossa brincadeira preferida era espionagem, daí eu virava a detetive e espiã Kate Kssm (um nome que eu inventei) e ele o James. (Tá. Não era o James, era o Bond, o James Bond. O que não era nada original, mas como eu disse, ele gostava de misturar sua imaginação com as coisas da tv.)

Fazíamos dos churrascos de família, dos aniversários de família, das viagens de família, e das ídas ao clube, as maiores tramas que podíamos imaginar!

Como ele era mais novo que eu, ele estava em vantagem, e eu pensava...

"Ele vai sentir vontade de brincar por mais tempo que eu. Sentir vontade não, ele vai poder."

Me dizia com muita inveja dele, observando com desgosto as meninas da minha idade tão bem arrumadas e eu feliz, toda suada.

"Nanda? Tu ainda tá brincando?"

"Tô."

E assim, eu clamuflava meu presentimento.

"Não está muito longe de eu me civilizar."

(Para meu querido amigo e primo Anderson.)