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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Fedífrago

Encaixando a chave do carro, pensando se deveria mesmo chegar e entrar decidida na recepção e seguir depois para a sala, passou a marcha pensando se não deveria ir decidida a recepção e cancelar tudo destinada a ficar sentada na praia observando o mar.
Foi saindo do carro seriamente, e antes de entrar colocou os óculos escuros e olhando para o retrovisor passou o batom concentrada. Estava de vestido preto, reto até os joelhos, tudo bem escondido, mas a cintura era visível e de uma certa maneira ficou até elegante, para quem parecia não estar interessada em estar nada.
-Pode seguir à direita, isto é, se for das 17:30?
Disse um secretário bonito e perfumado parecendo estar apressado.
-Eu mesma.
No corredor, só se ouvia os sapatos, e entrando deitou-se no sofá, depois dos bons modos claro, e quando o doutor pegou o caderno, ela foi falando sem perguntar se podia, e sem esperar uma pergunta:
-O universo da minha cabeça e eu mesma com mais ninguém envolvido nisso, sofre de duas coisas: Traição e dúvida. É meio confuso de explicar, por isso eu prefiro não sair falando, mas eu penso, porque pensar para mim, não precisa de muita explicação.
Ele foi anotando, e com certeza deve ter anotado a pressa, a maneira de desabafo, e como ela não tirou os óculos escuros naquela sala amarela.
-Penso que existem dois tipos de pessoas. As seduzidas, o próprio nome já nos remete que se seduzem, e as pessoas sensatas, que não se movem por qualquer ladainha...ladainha não é gente...
Fez uma pausa bem humorada, o que deixou o doutor incerto, ela ria dela mesma ou tinha direcionado o comentário para ele sorrir também? Ela conversava só olhando para o teto.
-Para o contexto doutor, acrescentemos as ideias, que servem para serem escolhidas . E com a sua ideia, não sua, e sim escolhida, porque as ideias tem donos de muito séculos atrás, você se orienta, e pensa, e concorda, e discorda.
E juntou as mãos ficando calada por um minuto que pareceu cinco.
-Comecemos do começo, do começo mesmo, de quando começaram a perguntar: "De chocolate ou de morango?" para mim. Sabe doutor, me divertia em escolher, dava uma sensação na qual me tornava de súbito muito importante, desconfio até, que quando eu brincava só tinha graça se as crianças de quando eu era criança, fizessem a pergunta que definiria o destino de cada um: "Vai ser do mal ou do bem, hoje?"
E virou a cabeça para ele pela primeira vez, notando a gravata cinza e admirada em como ele conseguia estar de pernas cruzadas com aquela barriga de desenho animado.
-No exato momento que eu saia de cima do muro doutor, minha cabeça me transportava para um lugar e um lado. E não sei se cheio de cavalos e bandeiras, mas a sensação era essa! E se eu gostasse desse lugar, só pairavam as ideias desse lugar, só eram confiáveis as pessoas desse lugar e lado, e eu tinha que lutar e ser fiel ao lado que escolhi.
-Hum...como se estivesse seguindo uma...ideologia?
Perguntou meio desconsertado, o que aparentou que esteve o tempo todo querendo interagir com a paciente sem querer bloqueá-la.
-É doutor, muito tempo depois eu descobri o que era Ideologia.
Disse, parecendo não estar muito interessada no que ele perguntava.
-Então, eu podia pensar que era uma pessoa seduzida. Já que para mim o importante era estar num lugar, ou lado, e ser disciplinada nas teorias impostas.
-Nas teorias impostas?
Perguntou já não mais desconsertado mas sim interessado, arrumando os óculos que decaiam pelo nariz.
-Por exemplo doutor, se o comunismo era bonito, eu era do comunismo. E se eu descobrisse que o sistema era cheio de contradição, eu preferia tampar meus olhos e fingir para continuar, do que aceitar o erro e mudar de posição.
-Hum...
Anotou quase sorrindo.
-Mas com o tempo, fui percebendo, que apesar de eu me entregar por inteira a ideologia que estivesse, se aparecesse outra melhor, com ideias mais mirabolantes, não tinha jeito, eu ficava calada por uns dias, repensava tudo... e traía todo aquele mundo! Me transportando para outro, voltando a me imaginar em outro lugar, defendendo outro lado, e amando tudo de novo.
-Sentia tédio?
-É doutor... muito tempo depois eu descobri o que era tédio. Logo depois, começou uma irritação. É num dia de sol, senti profundamente que eu não escolhia nada, a não ser o que meu lado quisesse, e que a sensação de ser subitamente importante ao tomar uma decisão, não era tão minha assim, e sim do lugar ou lado que eu estivesse.
-Hum... Como se você fosse só mais um membro da ideologia?
-Nem isso doutor, era mais como se eu fosse usada para que a ideologia vivesse.
-Se sentiu enganada?
-Por que?
-Não sentiu?
-Pareceu? Mas não, a traição que eu falei que sofri, ainda não começa aqui, mas eu concordo que talvez eu tenha ficado meio frustrada mesmo com isso...

-Hum...
E anotou, quebrando a ponta do lápis e tirando outro rápido e afiado do bolso.
-Doutor, vou pular das ideias chocolate ou morango, para as mais centradas, até porque, nunca vi ideologias darem importância a chocolate ou morango, vamos falar das ideias que elas dão valor, como casamento, escola, aborto, eutanásia, crenças, partido, educação, amor, sexo, morte, vida, só para o senhor se atear e não pensar que eu sou confusa.
-Hum...
Anotou quase sorrindo outra vez, o que pareceu que a muito tempo não encontrava pacientes tão diferentes.

-E meu soldado disse doutor...
Ele arregalou os olhos, ficou com medo de não ter prestado atenção em algum detalhe importante mas a interrompeu ansioso pelo o que ela contaria:
-Como? Desculpe, seu soldado?
-É doutor, metáfora.
-E...o que significaria?
A mulher ajeitou o vestido com dificuldade, já que estava deitada naquele sofá e não queria parecer promiscua, virou para ele, pois falava tudo olhando para o teto e ainda com aqueles óculos escuros, e imitando uma voz masculina, ela disse:
-Sen...tido!
O doutor levou um susto, ficou confuso, e ela voltou a olhar para o teto sorrindo, e disse:
-O soldado inventado que me diz doutor, o que faz mais sentindo?
O doutor ainda abismado, ficou impressionado com a metáfora da mulher,e ainda um pouco indignado, ele jamais tinha sido pego de surpresa com imitações daquele nível, só com choros desequilibrados.
-Foi ai que foi traída? Não encontrou sentindo nas ideologias?
-Aos poucos o senhor me entende doutor, mas ainda não foi aí. Como eu disse, eu me declarava seduzida, me declarava tola e preguiçosa.
-Por que tola e preguiçosa?
-Porque eu negava os defeitos da ideologia que estivesse para continuar, coisa que pessoas sensatas não fariam.
-Mas você não disse que depois repensava e trocava suas ideias?
-Aí é que está.
-O quê?
-Talvez eu tivesse medo de chegar ao ponto de ter passado por todos os lados e lugares e ter concluído de que para sempre... em nenhum ideologia eu estaria.
-Está me dizendo que você tinha medo de viver todas as ideologias e no final das contas não sobrasse nenhuma agradável?
-Sim.
-Isso é sensato. Se fosse uma pessoa seduzida, não trocaria, continuaria nas que achasse errado por paixão, não acha?
-É aí que está a traição.
-Desenvolva...
-Eu não sei mais se sou uma pessoa sensata ou seduzida. Descobri que sou uma pessoa sensata, mas que talvez, no fundo eu só queria ser uma pessoa seduzida, entende?
-Uau...
Admirou baixo, e logo disfarçou com lápis e papel.
-E a dúvida?
Perguntou parecendo um fã.

- Penso se tudo isso é um defeito, me punindo através da minha estima propositadamente, e ás vezes até na frente de gente.
-Hum...
-Ou se não tenho culpa nenhuma de ser assim, e só não deveria pensar nessas coisas.

-Pensar nessas coisas te incomoda?
-Não. Incomoda saber que só eu penso nessas coisas. Ou que ninguém entenda se eu contar.
-Você já contou para alguém?
-Não. Mas vou escrever, talvez eles entendam pelas metades.
-Por que você veio aqui?
-Por que? Só para falar dessa traição e dúvida. No fundo eu já sabia que era sensata, mais queria ser seduzida. Esperava saber porque eu quero ser seduzida.
-Hum...talvez você não consiga lidar com a falta de sentido que não encontra quando deixa de estar seduzida.
-É. Gastei cem pilas com o que estava escancarado, mas o que eu faço se eu quero ser seduzida e não sou?
-Podemos trabalhar nisso. Está disposta a voltar e a querer lidar com isso?
-Acabo de me lembrar da morte doutor.
-O que tem a morte?
-Esqueci de lhe contar da morte. Na verdade doutor, eu já pensei em tudo...
-Tudo o quê?
-Eu não vou chegar ao ponto de ter vivido todas as ideologias possíveis e sentir a desagradável sensação de nenhuma ter me conquistado para sempre, porque a morte me levaria bem mais cedo, já que a quantidade de vida que me resta é desproporcional a quantidade de ideologias que ainda me restam nesse planeta.
-Então vai lutar contra sua sensatez e continuar a querer viver a pessoa seduzida enquanto te houver vida?
-De manhã ou de tarde? Porque eu trabalho.
-Como?
-Eu precisava aceitar essa traição, dúvida e...tédio.
E jogou os joelhos do sofá em direção ao chão, passando as mãos no coque, procurando alguma falha, depois saiu em direção a bolsa pendurada na parede, arrumou a calcinha embolada antes de puxar a bolsa, contou o dinheiro baixinho, o que com aqueles óculos parecia uma mafiosa, deixando em cima da mesa, reparou os livros da estante, e foi saindo. O doutor descruzou as pernas, e não sabia o que falar, ela se virou, deu um sorriso como se fosse o aperto de mão de despedida e abriu a porta, entretanto, antes que a porta fosse fechada, abriu de novo, sua mão apareceu como se estivesse impedindo um desfecho trágico, ele percebeu as unhas bem pintadas de escuro, o que deu um ar meio tenebroso, e ela disse:
-Como é seu nome mesmo doutor?
-Aristissabal.
-Obrigada, doutor.
E a porta se fechou só se ouvindo o barulho dos sapatos no corredor.


(Fedífrago segundo meu Houaiss significa desleal, traidor, que rompe um tratado, um acordo, pérfido.)

3 comentários:

NaNa Caê disse...

"-O universo da minha cabeça e eu mesma com mais ninguém envolvido nisso, sofre de duas coisas: Traição e dúvida. É meio confuso de explicar, por isso eu prefiro não sair falando, mas eu penso, porque pensar para mim, não precisa de muita explicação."

meu deus. eu amei isso O.o

NaNa Caê disse...

"-Penso que existem dois tipos de pessoas. As seduzidas, o próprio nome já nos remete que se seduzem, e as pessoas sensatas, que não se movem por qualquer ladainha...ladainha não é gente..."

ain .. e esse trecho também. tsc

"E juntou as mãos ficando calada por um minuto que pareceu cinco"


"-Doutor, vou pular das ideias chocolate ou morango, para as mais centradas, até porque, nunca vi ideologias darem importância a chocolate ou morango, "

muito bom pqp.. ghasgdyuasd



kkkkkkkk.. to morrendo de rir aqui do soldado...do sentido!! jsiadioasd

"-Não. Mas vou escrever, talvez eles entendam pelas metades."

tsc.


"-Então vai lutar contra sua sensatez e continuar a querer viver a pessoa seduzida enquanto te houver vida?-De manhã ou de tarde? Porque eu trabalho"

kkkkkkkkkkkkkkk.. morri.



Fê... geralmente eu comento os textos no geral, mas esse aqui não teve como, foi necessário todos esses detalhamentos.
eu o li e reli..trili (?) existe? agora sim, aqui sim. hunf!!

enfim .. digo com total certeza que esse foi o melhor que eu ja li aqui.
sim, eu ja li todos, desculpa aê.

hashduiashuid

Marina de Alcântara Alencar, a Nina. disse...

adoreei!