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quarta-feira, 4 de julho de 2018

O bico vermelho

Patrick era o melhor pintor da sala no pré-escolar. "Me empresta o apontador?", eu puxava assunto. "Claro!", ele dizia. Todos seus desenhos tinham cores corretas e reais nas coisas que ele pintava. Ele entendia os contornos, entendia que tinha que pintar dentro sem sair das linhas, sem borrar. Aquilo pra mim era surpreendente. Alguém que entendeu o processo como eu. Todos os outros colegas faziam rabiscos, pintavam fora do contorno. Patos azuis, patos verdes e roxos... quanta tolice, eu pensava. "Será que eles um dia vão se tocar que não existem patos coloridos?", eu me perguntava.
Patrick gostava de ouvir elogios, logo percebi que ele sabia que era o melhor da sala. Acho que eu gostava do Patrick por causa da sua habilidade, do seu despertar antes de todos, do seu exibicionismo, da sua organização, de sempre ter um apontador no estojo, e toda aquela sua vontade de ser o melhor e possuir os desenhos mais bonitos. Nunca me esqueci de um pato amarelo com bico laranja que ele pintou.
Todo mundo da sala havia pintado os patos de cores aleatórias. Nessa época eu era clássica. Gostava do realismo nas coisas. Patrick era o mais baixinho, usava a camiseta do uniforme pra dentro do short, era moreno-escuro, cabelo bem rente ao crânio e tinha um irmão que não desgrudava dele no recreio e na saída que eu não me lembro mais o nome. O que eu não sabia é que Patrick era competitivo. E enquanto eu o exaltava em segredo, Patrick terminava seu desenho com o peito já cheio de ar de orgulho de si mesmo, e observa atenta seus passos pela sala.
Ele saia olhando para os desenhos dos outros colegas com desprezo. Pintei o meu pato de amarelo com um bico vermelho, apesar de nunca ter visto um bico vermelho. Eu pintava com força, não conseguia pintar clarinho. Sempre gostei de cores fortes. Quando Patrick viu meu desenho, espantou-se de maneira perceptível. Fez uma cara estranha e falou algo sobre meu desenho não ter ficado tão bonito, o quanto eu pensava que estava. "Por que ele não disse a palavra feio? Então ele sabe que ficou bonito mas eu não posso saber?", e tive o primeiro pensamento adulto na minha infância.
Nessa hora percebi que talvez o bico vermelho tenha chamado atenção com o amarelo, a ponto de deixá-lo inseguro com seu pato tradicional. Pensando bem eu fui genial. Juntei algo tradicional com algo inovador. Talvez eu fosse realmente boa com as cores. Eu sabia que não estava feio e toda minha admiração por Patrick ia por água abaixo quando percebi que ele só era seguro porque todos os outros desenhos não eram seus concorrentes. "Nem existe bico vermelho!", ele me disse com um pouco de desdém e correu para o fim da fila e foi apontando para os patos azuis, rabiscados, roxos e verdes, dos coleguinhas, dizendo: "bonito", "bonito", "bonito", até chegar ao meu e dizer "feio!".
Patrick agora tinha que lidar com alguém tão bom quanto ele nas pinturas. Naquele dia eu soube que era boa de uma forma um pouco decepcionante. E também que nem todo mundo que é bom em algo, tem um bom coração ou intenção. Patrick enganava os outros colegas para ser bajulado, mas no fundo não queria que eles fossem melhores do que ele. Nunca mais andei com meus lápis de cores desapontados.