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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Os boatos no colégio diziam que ele tinha um beijo apaixonante

No primeiro semestre do meu curso de Jornalismo, Allan Barbiero, meu professor de sociologia falou sobre um livro que falava sobre suicídio e havia sido proibido. "Por que?", eu perguntei. "As pessoas simplesmente se matavam depois de ler o conteúdo". Fiquei dias pensativa. Era o que eu mais fazia quando entrei na universidade. Minhas notas também eram bem melhores do que no ensino médio. 

Hoje acordei com uma música na cabeça do tempo do terceirão... a voz de um menino terrível em sala de aula, o que eu me lembro dele era que ele tirava notas baixas. Mas eu também tirava.  Ele parecia que tirava notas baixas por ter o intelecto menos desenvolvido. Eu por falta de concentração, esforço e autoestima. Como eu era desacreditava de mim na adolescência...

O menino se auto denominava burro. Eu não me considerava burra apesar de estar quase sempre no mesmo patamar que ele. Ele estava sempre de recuperação, eu também. Em alguma matéria de exatas. Ele gostava muito de ficar rodeados de meninas, eu também. Ele as beijava na boca e nas bochechas, colocava elas em seu colo e ao mesmo tempo que parecia estar apaixonado por todas, também parecia não ser apaixonado por nenhuma. Igor se matou anos depois que o ensino médio acabou. Fiquei sabendo pela internet. 

Quando o conheci ele era um "retardado" sentimental. Ele gostava de ser o retardado da sala. Falava coisas bobas quando ninguém esperava, era tirado de tempo pelos professores mais temidos, e sentia um prazer imenso em deixar as pessoas com aquela sensação de constrangimento e vergonha alheia.  Os boatos no colégio diziam que ele tinha um beijo apaixonante e que estava disposto a ensinar as garotas a beijarem na boca. Uma amiga quase perdeu o bv com ele na época, mas depois de tirar uma nota baixa resolveu esperar. Quando todo mundo falava ao mesmo tempo na sala de aula, e a bagunça era sem controle, ele cantava uma música como se a sala fosse um quarto de recém nascido, uma letra calma que dizia: "Vamos falar mais baixo, vamos falar bem baixinho...". Essa frase era repetida várias vezes até que todo mundo prestava atenção sorrindo. Algumas vezes ele tinha crises de choro contada por outros colegas. Eu nunca presenciei ele triste, no mínimo meio nostálgico. 

Ficava curiosa sobre essa parte dos boatos que eram contado pelos colegas da nossa sala. Talvez eu já tivesse um pouco uma alma de jornalista. Lembro que uma vez descobri por uma colega de classe que ele já havia tomado veneno de formiga para morrer, porque havia discutido com a mãe.  Não me lembro dele chorando, lembro dele retardado, fazendo parte do grupo dos engraçados da sala de aula. Dos que todo mundo espera algo inusitado. 

"O que é mestrado professora?", ele perguntava no meio de um sermão dela sobre o nosso futuro e tudo que íamos sofrer em uma faculdade com aquele comportamento de fundamental no ensino médio. Metade da sala virava os olhos e a outra sorria, e a professora dava uma tirada nele antes de responder que ele pesquisasse no Google. "Pelo jeito mestrado você não vai ter", ela terminava com certo sadismo. 

Lembro de uma sensação de união que tivemos aquele ano que nunca mais senti. Parecia que todos íamos vencer na vida depois de 2008. Jamais imaginei que um de nós ia se matar no meio do caminho, ter filhos, casar, namorar com alguém do mesmo sexo, acreditar e desacreditar na vida diversas vezes, fumar maconha, sofrer um coma alcoólico, fazer uma plástica, brigar por política nas redes sociais, arranjar um emprego de oito horas, pagar contas todo maldito mês e começar e terminar um mestrado, por exemplo. 

O que eu soube do Igor depois do colégio é que foi fazer medicina fora do Brasil, porque não conseguiu passar. E que teve um filho. Que era um pai sentimental. E houve rumores de que ele começou a beijar meninos e que dizia não ter preconceito com nada que o fizesse feliz. 

Lembro que depois da cerimônia religiosa do terceirão, fui em seu colo no carro de alguém para a festa de despedida. Lembro da cara dele quando viu que eu só caberia no carro se fosse sentada no seu colo. "Pode ficar tranquila Fernanda, que eu não vou fazer nada contigo, sei que tu me daria um murro na cara", ele disse sorrindo, e sentei salientando que ainda bem que ele sabia o que podia acontecer. Depois da festa de despedida, nunca mais o vi. 

Vi uma foto dele com roupas de frio uma vez no finado Orkut. Estava em um lugar muito frio,  isso foi um ou dois anos depois que o colégio já havia acabado. 

A última notícia que tive do Igor foi que ele havia se matado. Fiquei dias pensativa... é o que fazemos quando estamos vivos.