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sábado, 22 de junho de 2019

Dezesseis

Condenaram a velha bruxa por admitir paixão. Não pode. Quanta audácia...loucura! Normal mesmo é admirar calado, olhar insistentemente, fingir que não vê e que não sente que nada acontece. A velha bruxa provoca tantos medos ou ainda me pergunta se só não revela quem são os verdadeiros portadores da coragem? Não está louca em nenhum dos dias. Fala do que sente apenas. Não perde nada com isso, muito pelo contrário, ainda se livra com mais facilidade da ilusão. Sem reciprocidade tudo vira apenas uma grande lição. Se houvesse, aí seria encontro, seria paixão, seria uma história de verdade. É grande a responsabilidade de não se permitir. Ela prefere sacudir, sacudir, sacudir... todas as correntes em nome do existir sentindo. Do existir mesmo que tudo seja um não. Melhor colocar pra fora do que engolir por dentro. Melhor acabar agora do que não saber como seria. Distorcem a história, os cavalheiros são tão covardes... Quanta bobagem para o tamanho do sentir! Ela nunca pediu explicação sobre o passado, nem prometeu nada. A velha bruxa só sabe da própria vontade, da origem da rosa vermelha no plano contra ela mesma. É um estepe, nas costas, na parede, no sorriso sem projeto para o futuro, na alegria e na agonia. Ardes, não ardes? Porque evitou? Estais preso não é? Ela também, no rock do precipício. Ela queria vê-lo todos os dias, queria um plano, um feitiço e acabar com a tortura. Como ela iria imaginar que o belo sol do fim do dia, queimaria os próprios pés na tarde do amanhã? 

domingo, 9 de junho de 2019

Carta a mão


Há uma conexão da minha pele com teus dedos, com meus dedos e tua pele. Nossos beijos são tão macios, devassos e precisos. Teu carinho abraça minha alma, colore as horas e torna as lembranças mais preciosas. Tu advinha meus desejos mais secretos sem que seja preciso eu dizer. Me sinto teu número, me transporto pra bons lugares quando estou contigo, sem passagem, sem tempo e senhas, sem problemas...

Há um encaixe em nós, uma força bonita nos gemidos, um movimento perfeito pelo espelho. Depois de ti, me sinto tão eu. Sou maior, sou melhor, sou amanhã. Gosto do teu corpo submisso ao meu tantas vezes, e como eu gosto meu deus, de me render e entregar, de não ganhar nenhuma única vez. 

Há um tesão que não passa, uma conversa simples que martela na minha cabeça, uma poesia no olhar, no sorriso, na gracinha, na comida... Há uma campanha ferrenha pelo nosso amor batendo no meu peito. Minha vida, minha estrada, nosso encontro, e uma nova passagem. Depois de você, eu sei que nem comecei. Existem dias maravilhosos pra chegar. Existem fotos mais bonitas pra se tirar. O peso das malas que iremos carregar, a ponta do lápis quebrando ao mudar os desenhos do projeto da casa e quem sabe um cachorro levado e feliz em nos ver chegar.

Quem explica quando somos paz? 
Quem decide quando somos felizes? 
Quem castiga quando somos corajosas? 
Quem suplica quando vamos até o fim? 

O tempo há de mostrar o que mais virá. O que mais existe, persiste e deve se ressignificar. O tempo passa a ser um amigo, um desejo, uma prata brilhante de compromisso nos dedos, um altar de preces e proteção. Amo-te como nunca amei. Sinto como nunca senti. Quero como nunca quis. Espero como nunca esperei. Preocupo como nunca preocupei. 

Quem explica quando estamos amando? 
Quem conhece quando somos verdade?
Quem ficará do nosso lado quando estamos enfrentando?
Quem entende quando não há mais confusão?

Amo-te, amo-te, amo-te. 




sexta-feira, 7 de junho de 2019

O cheiro das flores


Donata foi minha professora de artes e logo de cara eu já sabia que não podia ser da minha cidade. O jeito que ela falava era diferente. Era possível enxergar que seus olhos viam além do que estivesse na sua frente. Eu era uma pré adolescente na época, eu era tão perspicaz. Pelas ondas do cabelo dela em plena era da progressiva e a calça jeans colada, ela entrava na sala sempre com seus vestidos coloridos, e me deu outra pista de que até poderia morar no mesmo lugar que eu e os colegas da sala, mas jamais pertenceria a nossa cidade. 

Ela entrava na sala na maior tranquilidade e nos contava a história dos grandes artistas e nos mostrava suas obras. Queria que nós pensássemos, suplicava. Por alguma razão idiota ninguém queria pensar. Outros fingiam que não pensava, como eu. 


Na maioria das vezes, eu percebi que as histórias dos artistas costumavam ser bem trágicas. Eu prestava atenção em segredo, não queria que os outros soubessem que eu entendia aquele segredo oculto da vida. Traições, pais mortos muito cedo, abortos, suicídios, amores perdidos, guerras, religiões... e eu pensava comigo mesma: “É preciso muito sofrimento para ser uma grande artista?”. 



Donata sempre dizia que a arte era muito mais do que só desenhar e pintar. Eu sempre reclamava que bom mesmo era no ano passado que podíamos apenas desenhar sem pensar. Eu gostava das aulas, mas não aceitava bem a nova etapa. E ela me dizia: “Você que pensa que não pensa enquanto desenha Fernanda... - e sorria - Você que pensa que não pensa enquanto pinta”, jamais pensei aquilo e nunca mais me esqueci.

Não demorou muito pra eu entender que era preciso sair das cores e entender o papel da arte além do branco, além das tintas e de todas as técnicas e séculos que cairiam na prova. Um dia, Donata me contou sobre um artista deprimido que tinha o nome de um irmão morto. Gostei dele quando soube que era triste. Fiquei com dó daquele homem, queria ser sua amiga. 


Em nossas apostilas víamos obras tão bonitas e diferentes. Pareciam estar em movimento mesmo que paradas, tinham cores alegres apesar dele parecer carrancudo. Vicente Van Gogh pintou coisas tão lindas e cortou a própria orelha... ou perdeu?! Não me lembro direito, mas imaginei a dor. 


Um dia Donata irritada com conversas paralelas, me perguntou de súbito por que eu achava que alguns girassóis do quadro estavam murchos dentro do jarro. Confesso que no fundo, no fundo, eu sabia dizer o porquê. De alguma maneira estranha eu era amiga de Van Gogh, mas o traí e não podia dizer. Não era legal que todos da sala soubessem que eu entendia um suicida. “Esse quadro é meio feio professora. Esse cara é meio maluco”, e a sala se acabou em gargalhadas. “Você é muito engraçadinha...preste atenção na aula por favor”. 

Vi nos olhos de Van Gogh que ele ficou triste comigo. Pedi-lhe desculpas. Não sei porquê, mas não fiquei do lado do meu amigo naquela aula. Não fiquei do lado da arte, e não disse para todos que talvez havia girassóis murchos por não saberem por qual motivo sorrir. Não disse que talvez não fossem reais, que eram imperfeitos. Talvez sentiam sede, foram esquecidos, arrancados sem querer... Talvez ali dentro do quadro não precisariam parecer felizes, radiante, contagiante. Disfarçar uma falsa alegria que ali dentro do quadro poderia ser triste apesar do amarelo radiante, que não precisava ser escondida, que poderia ser expressa. 

Os anos se passaram e Donata nunca soube que um dia mamãe chegou em casa com uma sacola enorme! Havia comprado um novo quadro para por na sala e era uma réplica daqueles mesmos girassóis de Vicent. “Olha que lindo minha filha! É do Van Gogh! Um pintor super famoso, conhece?”, ri um pouco e disse que sim. O quadro parecia tão bonito agora. Eu podia sentir o cheiro fúnebre das flores pela sala.  

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Direção

Posso atravessar o rio sozinha agora. Consigo nadar, respirar debaixo da água, ser água. Amo-te, mas afoguei sem muita explicação algumas das nossas lembranças mais encantadas. Acho que fui um pouco deslumbrada, meio ingênua ou dedicada demais com a construção das minhas memórias. Acredito que isso não seja tão ruim, é bom até. Coloquei meus pés no chão, sinto a areia neles novamente. Seguir a estrada flutuando é prazeroso, mas podemos cair a qualquer momento quando nos falta um pouco de fôlego. Me sinto um pouco mais minha. Mais dura talvez. Não quero ser inteiramente minha quando vejo tua segurança em ser tua... ainda me assusta as vezes, nos pensar separadas. Sofro por algum motivo desconhecido. Está no meu mapa, nas estrelas, no primeiro choro do meu nascimento. Quem sabe o meu amor seja meio posse, meio ruim, meio brega, avassalador, dramático, meio julieta e romeu. Não quero ser assim, me vejo errante, me vejo pecado. Te vejo iluminada, te vejo milagre. Talvez, sofrer por não querer se imaginar tendo que recomeçar tudo de novo seja até um pouco normal em tempos de amores efêmeros e egocêntricos. É bem provável que eu não sabia mais onde eu estava. Você conseguia equilibrar bem talvez... você aguenta qualquer pancada? Te sinto conseguindo abstrair e endurecer com facilidade. Também te acho mais maliciosa ou inteligente agora. Quem sabe eu não tenha sido derrubada do cavalo, quem sabe eu não tenha perdido uma coroa que eu achava que tinha. Sou rígida e presto bem mais atenção nas minhas cegueiras indiscretas. Nas armadilhas das minhas sombras e imperfeições... no meu lado carrasco que por vezes mergulha e quer respirar. Percebo minha insegurança com um pouco de pena. Tento não me ludibriar e pensar que o amanhã não me pertence. Somente o hoje. O hoje sim a gente dá conta. E assim, hoje te perdoou, amanhã não se sabe. Dessa forma posso e seguro tuas mãos agora, seguimos juntas e reconstruímos essa história numa nova temporada. É bom te amar... é tão bom chegar contigo. Sinto alívio em descobrir que duas perdidas em choro conseguiram de alguma forma desaguar para um novo caminho. Eu peno, as vezes... mas também penso. Outras, a paranoia toma conta e aos trancos e barrancos, engulo alguns sapos e escuto algumas das minhas piores sombras... controlar é preciso. Não quero movimentos que me levem para a lama, onde dormem os jacarés. Quero o meio do rio, matar a minha fome e não ser comida, quero a correnteza, o azul e o verde, aquele brilho do sol que bate nas águas e tem cheiro de verão. Quero atravessar com minha própria direção.