Páginas

sexta-feira, 7 de junho de 2019

O cheiro das flores


Donata foi minha professora de artes e logo de cara eu já sabia que não podia ser da minha cidade. O jeito que ela falava era diferente. Era possível enxergar que seus olhos viam além do que estivesse na sua frente. Eu era uma pré adolescente na época, eu era tão perspicaz. Pelas ondas do cabelo dela em plena era da progressiva e a calça jeans colada, ela entrava na sala sempre com seus vestidos coloridos, e me deu outra pista de que até poderia morar no mesmo lugar que eu e os colegas da sala, mas jamais pertenceria a nossa cidade. 

Ela entrava na sala na maior tranquilidade e nos contava a história dos grandes artistas e nos mostrava suas obras. Queria que nós pensássemos, suplicava. Por alguma razão idiota ninguém queria pensar. Outros fingiam que não pensava, como eu. 


Na maioria das vezes, eu percebi que as histórias dos artistas costumavam ser bem trágicas. Eu prestava atenção em segredo, não queria que os outros soubessem que eu entendia aquele segredo oculto da vida. Traições, pais mortos muito cedo, abortos, suicídios, amores perdidos, guerras, religiões... e eu pensava comigo mesma: “É preciso muito sofrimento para ser uma grande artista?”. 



Donata sempre dizia que a arte era muito mais do que só desenhar e pintar. Eu sempre reclamava que bom mesmo era no ano passado que podíamos apenas desenhar sem pensar. Eu gostava das aulas, mas não aceitava bem a nova etapa. E ela me dizia: “Você que pensa que não pensa enquanto desenha Fernanda... - e sorria - Você que pensa que não pensa enquanto pinta”, jamais pensei aquilo e nunca mais me esqueci.

Não demorou muito pra eu entender que era preciso sair das cores e entender o papel da arte além do branco, além das tintas e de todas as técnicas e séculos que cairiam na prova. Um dia, Donata me contou sobre um artista deprimido que tinha o nome de um irmão morto. Gostei dele quando soube que era triste. Fiquei com dó daquele homem, queria ser sua amiga. 


Em nossas apostilas víamos obras tão bonitas e diferentes. Pareciam estar em movimento mesmo que paradas, tinham cores alegres apesar dele parecer carrancudo. Vicente Van Gogh pintou coisas tão lindas e cortou a própria orelha... ou perdeu?! Não me lembro direito, mas imaginei a dor. 


Um dia Donata irritada com conversas paralelas, me perguntou de súbito por que eu achava que alguns girassóis do quadro estavam murchos dentro do jarro. Confesso que no fundo, no fundo, eu sabia dizer o porquê. De alguma maneira estranha eu era amiga de Van Gogh, mas o traí e não podia dizer. Não era legal que todos da sala soubessem que eu entendia um suicida. “Esse quadro é meio feio professora. Esse cara é meio maluco”, e a sala se acabou em gargalhadas. “Você é muito engraçadinha...preste atenção na aula por favor”. 

Vi nos olhos de Van Gogh que ele ficou triste comigo. Pedi-lhe desculpas. Não sei porquê, mas não fiquei do lado do meu amigo naquela aula. Não fiquei do lado da arte, e não disse para todos que talvez havia girassóis murchos por não saberem por qual motivo sorrir. Não disse que talvez não fossem reais, que eram imperfeitos. Talvez sentiam sede, foram esquecidos, arrancados sem querer... Talvez ali dentro do quadro não precisariam parecer felizes, radiante, contagiante. Disfarçar uma falsa alegria que ali dentro do quadro poderia ser triste apesar do amarelo radiante, que não precisava ser escondida, que poderia ser expressa. 

Os anos se passaram e Donata nunca soube que um dia mamãe chegou em casa com uma sacola enorme! Havia comprado um novo quadro para por na sala e era uma réplica daqueles mesmos girassóis de Vicent. “Olha que lindo minha filha! É do Van Gogh! Um pintor super famoso, conhece?”, ri um pouco e disse que sim. O quadro parecia tão bonito agora. Eu podia sentir o cheiro fúnebre das flores pela sala.  

Nenhum comentário: