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terça-feira, 17 de agosto de 2010

Memória faminta.

Eu lembrei que possuia um chão vermelho que soltava tinta, sinal de que o consultório era barato. As poltronas com estampas de pele de zebra me deram uma má impressão da credibilidade do doutor, é que pareceu chimfrim, papagaiado demais, sem contar que as paredes eram de um amarelo muito sem educação para os olhos. Havia uma mulher, não esqueço nunca, estava esperando. Era muito magra por sinal, aposto que não comia, talvez sofresse de anorexia, quem sabe de amor...sei que alguma coisa em sua vida cheirava fome.

domingo, 8 de agosto de 2010

Três da tarde.


Evitando maiores ou menores julgamentos sobre qualquer assunto, nem sei se foi percebido, mas subestimar com o passar do tempo, tornou-se um vício devastador. Acabou que ela nunca ia entender, aceitar, concordar, nunca ia gostar, saber, ser capaz, nunca ia chamar, pensar, e então ela nunca.
Houve um tempo que se telefonavam e perdiam horas enrolando o fio do telefone, alguém tinha que interferir para não ficar caro. Agora paira no ar a pergunta: "Que tanto de assunto era aquele e para onde foi tanta gargalhada?".Se a imaginação de uma delas estiver certa, todas aquelas risadas puras terão sido recortadas e espalhadas para pessoas que precisem de sobra.
Comparavam o zelo das apostilas e letras, uma delas suplicava que a outra a ensinasse a desenhar mais bonito e cantava sempre fora do ritmo ou mostrava, receosa, uma letra de música que achava inteligente, dizia: “Não é brega, tu vai gostar”. Tinha o jeito de amarrar os tênis no inter-classe também , dava a sensação de que estavam em campo de batalha. E aqueles novos anéis no dedo, foram reparados sim e combinavam com ela.
Uma afirmava ser um besouro, a outra que era formiga e brigavam constantemente. Ás vezes uma se via tão cruel, outras vezes era a outra, mas talvez por isso aprenderam e esperavam mais daquela amizade, nenhuma era tão boazinha, tinha competição. É engraçado como se arrependiam, queriam fazer as pazes sem ter coragem de dizer: "Não consigo, sinto sua falta". Esperavam a hora certa para aquele sorriso que significava: “Pode falar comigo outra vez”, uma delas disse que era o código para voltar a rezar em paz.
A outra, achava patético não falar abertamente sobre brigas e desculpas, mas entendia que tudo isso era consequência daquela vez que foi surpreendida por um pedido de desculpas olho no olho e ficou assustada com a atitude inesperada e acabou não respondendo nada. Tinha sido sem querer, jurava! Mas a demora se concretizou como um não. Teve plena convicção de que envenenou os fios do futuro por conta disso, se tivesse comentado sobre isso... vai saber porque ficou omissa. Havia a suspeita de que por isso também, ficaram tão mudas anos depois. Dizem que amadureceram, mas fingir não estar incomodada para não estragar, para evitar, para não precisar gastar maiores sentimentos, só porque sabiam que se brigassem sentiriam falta depois, tornou-se um hábito estratégico tão mecânico, que no fundo, desejavam mil vezes uma conversa sincera sobre o que realmente estaria acontecendo ou incomodando, do que o silêncio de mais um sapo engolido em formato de não ter muita importância o que acontecia. "Por que achavam a emoção tão ridícula?". É até contraditório como acabaram bem mais sensíveis dessa maneira. Não foi muito saudável uma não avisar para outra, uma achava que a outra era um poço de insensibilidade e procuraram novos ouvidos, novos conselhos, os assuntos não se encontravam mais, os caminhos do colégio de volta para casa eram desviados por medo de andar três ruas a mais em silêncio e os segredos não eram mais em primeira mão. Mesmo assim, era como se tivessem um contrato, cuja a intimidade do comecinho da amizade era preservada, e as mudanças e novidades que apareciam eram desavisadas. Creio que por isso, mesmo juntas, tornaram-se tão desconhecidas e indiferentes.
Ainda compartilhavam o sentimento de uma estranheza no final do dia, ainda pensavam em quando seriam mais experientes, mais inteligentes e mais bonitas e aquela promessa meio "Peter Pan" que fizeram, pode-se dizer que foi apagada. É que tinham a impressão de que seria emocionante crescer e foi tão despercebidamente, que só sobrou a curiosidade: "Foi emocionante para ela?".
Confundiram-se, eram tão diferentes ou bem diferentes?
Era o mês de aniversário de uma delas, estavam longe, uma se pintava para sair e veio um pequeno “flash” do nada, de tudo que vivera com a outra. Lembrara de umas coisas que já tinha anos, tinha certeza de que nunca nessa vida haveria de se lembrar, e sorriu sozinha, sem saber se era mais incrível como conseguira esquecer em pequenos goles de aos poucos ou de como conseguira lembrar sem avisos.
Juntas, tudo era mais espalhafatoso. Lembrou que os olhos da amiga sumiam e sua própria boca crescia, num desespero causado pelo sorriso e que ela era insaciável e pedia que repetisse de meia em meia hora as imitações ou comentários, até que as duas pudessem chorar ou serem chamadas de loucas.
Lembrou dos telefonemas chorosos que a matavam de vergonha. Ela se desmilinguia como se tivesse cinco anos de idade e deixava a outra perdida quando estavam ao vivo, pois se demonstrava segura, como se nada tivesse deslanchado. E a audácia de comprar as brigas com os meninos, meninas, professores ou quem quer fosse que as chateasse, era intimidador, mas era uma irmandade que jamais teriam igual na vida. E foi tanta tarefa de casa copiada, tanto trauma cuspido e chiclete dividido que a adrenalina de uma segunda-feira com o mesmo penteado de cabelo, e a vontade de viver um filme de ação em plena três horas da tarde, não vale nem um terço do esquecimento do porquê de terem começado a simplificar as falas e esconder as crenças e dúvidas, maquiando seus melhores momentos. Trancaram o ódio, vomitaram agrados, desconfiavam dos elogios e uma delas até desabafava em escrito para queimar depois. Discordavam mesmo, de tudo que saísse da outra e se deixaram ser a última a saber. Pararam de ser naturais, mediam as palavras. Assim...só sobrava serem chatas, típico de adolescente. O que era pior, era que embora fossem diferentes, não eram ao ponto de uma não querer mais saber da outra. Não. Não foi tudo uma impressão, foram realmente amigas.
Os desvios repetitivos de um par de olhos para o outro é que deixaram claro que sobrara medo do que desconheciam. Demorou sim, confiar em novas pessoas.