Páginas

domingo, 23 de abril de 2017

Minha selvageria

Cheguei a pensar por algum momento que vinha perdendo minha selvageria... mas isso não pode ser verdade. Não posso ser alma subtraída. Todos aqueles que eu toquei o coração de alguma forma, vem sendo capazes de relembrar minha voz e meus sorrisos...e me aquecem. No final das contas é apenas isso que importa. E traiçoeiro do mundo que nos faz esquecer disso. Esquecer o nosso melhor, esquecer aqueles que nos fizeram companhia, esquecer o que nos sequestra e entorpece por alguns minutos nos dias que precisam sair em ordem e darem certo no final. Esquecer é a maior tragédia que pode acontecer. Tem uma cobra preta em cima da minha cama agora. Uma cobra tão preta que brilha. Curiosamente sinto que deveria estar com medo dela, mas impressionada não consigo. Sonhei com ela. Era pra ter sido um pesadelo, um azar, como um gato preto que passa e deixa fumaça...mas, ela é minha. De alguma forma ela nada mais é do que minha agora. Passo a entender que estando na minha cama, é o maior sinal de intimidade que eu tenha com todas as situações que pareciam perigosas, que me cercavam e me tiravam o sono. Que transição é essa que não consigo sentir medo dela? Imagino, ela enorme na cama de muitos e o estrago que ela pode fazer caso se pense muito sobre ela e tão pouco sobre o que fazer com ela. Por aqui acabou...Havia uma sensação de ser engolida, de desproteção, de quase mordida e constante retaguarda. Agora não. Posso dormir com tudo isso e tranquilamente acordar consciente de que da pra lidar sem medo. Sou muito mais selvagem do que eu podia imaginar e talvez o que eu perdi de verdade foi o significado que eu tinha de coragem. Corajosa eu sou todo dia, quando dou passos lentos e enfrento com medo mesmo. Nada mais selvagem do que estar inteligente para perceber de forma tão intensa e não se perder, não quebrar, não cair e agir, simplesmente conseguir agir de maneira leal a cor da sua voz e sorriso. Não se pode esquecer isso. Só pode ser isso que realmente importe no final das contas.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Segredos engraçados

Senti falta do que eu era anos atrás
Momentos que me transformavam e eu não sentia
Paixões que eram vivas
Do meu peito voraz!
Da fé...perturbada, triste, cheia de palpites...
Ah, quando eu escrevia cartas!
Senti falta...
Dos meus papéis, inúmeros papéis que eram importantes ser guardados nas minhas gavetas,
que eram importantes não interpretar
que eram importantes e eu assinava sem ler o contrato
Sinto que jamais poderei queimar todos numa lata de lixo, nem descobrir suas causas e funções.
Sinto... em algum momento, o cabelo apenas pacientemente crescer também foi sagrado, massacrado, intolerante, massificado...
A vida e eu tínhamos segredos engraçados, senti falta até como sinto dos pneus murchos da bicicleta que deixei naquela mudança.
Quantas mudanças?!
Meu deus...
Inúmeras mudanças que fiz e fui me deixando em cada uma delas, e me substituindo por outras,
por outras e mais outras...até me dar conta que ainda e sempre, todas nós, éramos eu.
Hoje eu senti falta do que eu era anos atrás,
Até que me lembrei que é só daqui que eu posso sentir desse jeito.
Só daqui, bem desse jeito.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

juntos


Sinto falta de quando todos nós éramos diferentes mas tínhamos o mesmo objetivo. Ou mesmo quando ainda achávamos que o objetivo de todos era o mesmo. Por que eu estava ali? No começo era uma coisa, depois era outra, no fim era tristeza e percepção da realidade. Quando éramos jovens demais pra saber que o que estávamos fazendo era uma espécie de loucura coletiva, ah... como eu sinto falta daquilo! Quando achávamos que tínhamos tempo pra aquilo, quando organizávamos reuniões, encontros, quando deitávamos naquela grama e pegávamos aquele sol... Meus amigos! Por que mudamos tanto? Por que deixamos pra lá? Por que nos afastamos tanto, mesmo depois que tudo acabou?! Éramos incríveis juntos... Éramos amorosos, divertidos, entusiasmados, bêbados e caminhávamos a pé para qualquer lugar sem reclamar... Éramos vivos, avisados, interessados, e hoje em quadrados, pensamos coisas sombrias e esquecemos como éramos juntos. Tínhamos algo dentro do peito, e  juntos, diferentes, um motivo para continuar e observar as flores de maneira diferente. Tudo foi perdendo a graça... Não tínhamos mais desejo pelo mundo lá fora... todos queríamos também fugir de algo e alguns até de alguém. Quem eram nossos pais? Quem amamos e não podíamos mais amar? Da onde viemos agora? Que bandeira podia nos pertencer? Cumprir metas, horários, aparecer... ah, o mundo das ideias, ah, o mundo do tesão, dos poemas, finalmente encontrados no meio do mundão perdido, eu me perdi...  não éramos iguais... mas por um momento ímpar, éramos iguais...

o plano


Ontem que ela foi entender porque chorou no dia seguinte. Depois, só depois de ter que pedir pra ir embora pra casa, foi que ela percebeu que não foi tudo tão natural assim. Não foi tão romântico, não foi tão honesto da sua parte. Só ontem, de repente, depois de vários anos e conhecimentos que obteve com experiências que nunca tinha tido, foi que ela pode entender porque tinha motivos de ter ficado triste aquela época. Era sua passagem, sua travessia, seu capítulo e história. E não há quem responda se foi o mundo que a confundiu toda ou se foram as histórias das outras pessoas que interferiram em várias virgulas e pontos. Havia algo estranho pra ser engolido. Algo estranho na juventude, no amadurecimento das coisas, algo profano e algo altamente sagrado que lutavam pra saber quem era mais forte, mais duro, pra ficar cravado, pra gritar na rua, para abrir as portas do coração. Todas as vezes que essa parte precisa ser contada, algo incomoda... Por que não se sabe dizer que doeu?
Doeu físico e mentalmente. Não era auto sabotagem. Parece ter sido tudo tão bem planejado por ela mesma, parecia ter sido uma iniciativa própria, algo que ela havia decidido ali mesmo, um impulso, uma atitude espontânea, mas não era apenas isso. Não era ela. Havia um interesse particular de se livrar daquilo. Um interesse que ultrapassava o outro e a si mesma. Uma visão distorcida do que ela carregava. Uma espécie de obrigação, um ritual que parecia estar passando da hora de acontecer. Queimou. Doeu. Ainda que tivesse sentindo alegria em ter rompido, ainda que tivesse sentido alívio. Ainda que não soubesse o que sentia. Era ela e não era. Era ela precisando se livrar dela mesma. Era ela estranhamente deixando que entrassem. Queimava. Não houve muitas explicações. Havia confusão sim. Só por dentro, uma programação que parecia ser sua. 

De fora

Entrei numa fantasia perigosa. Eu não sabia como iam ser as coisas. Num primeiro momento eu ainda tinha alguns referenciais de mim. Estava alegre, destemida, parecia que eu estava começando a entrar no eixo do inesperado, do que me surpreende, do que eu nem esperava mais. Mas eu não sabia que esses meses seriam tão intensos assim, não sabia também que eu poderia perder a cabeça, que eu aprenderia a lidar com tantas pessoas, que eu poderia por fim mostrar quem eu era. Eu era! Eu era sim. Mas também, tão ingênua e desprotegida de mim. Quem poderia me defender se não as pessoas que conquistei pelo caminho. De algumas coisas nem sequer me lembro, de outras me martirizo. O que poderia me abalar mais? Minha cabeça, meu deus minha cabeça entrou num frenesi. Mas os amigos que eu encontrava pareciam me conhecer de longas datas, eu me sentia finalmente especial naquele ambiente, ouvida, questionada, inteligente. Eu era liderada da forma que eu sonhava, e muito especial, como eu deveria me sentir sempre... mas por quê? Porque eu não era capaz de sentir tudo aquilo antes? Por que foi preciso vir de fora? Por que? 

domingo, 2 de abril de 2017

O velho saliente

Toda vez que passávamos por aquele rua, minha prima dizia "É aqui que ele mora, o velho saliente!", antes que eu olhasse, ela tampava meus olhos e dizia "Nunca olhe pra cá, ele pode ver que você viu!". Era uma casa muito próxima da casa do vovô. Diziam que ele morava sozinho e que tinha mexido na neta de 5 anos. "Mexido como?", eu perguntava sentindo pelo constrangimento da vovó, que era mexido de uma forma ruim. "Mexido Nanda!", minha prima dizia como quem não quisesse que minha vó contasse os detalhes. "Não passe nunca por essa rua sozinha, e se tiver que passar, passe bem longe, do outro lado, na outra calçada", vovó dizia. E então aquela rua passou a ser uma rua sombria para mim. 
A noite, eu sonhava que passava por aquela rua e via um velho balançando numa cadeira. Não conseguia ver seu rosto, mas ele já sabia que eu estava olhando para sua casa, e sabia mais... sabia que eu sabia do seu segredo. Então, eu acordava com medo e pensava "Por que? Porque a gente sabe e tem medo?". Dali em diante, sempre que precisei passar, passei pelo outro lado. E aos pouquinhos, tentando ver. Não me lembro da cor da casa, nem do portão, só me lembro de uma porta de vidro e que lá dentro parecia ser mal assombrado também. 
Certo dia, em alguma brincadeira dessas de rua que juntava mais crianças, não me lembro quantas meninas eram, mas uma de nós foi parar lá do outro lado da rua sombria e vinha correndo de lá, dizendo "Ele abriu a calça! Eu vi!". Não dava para entender direito o que acontecia, parece que ele tava vindo, e minha prima puxou minha mão, antes que eu pudesse vê-lo. "Vai ficar aí pra ele ver seu rosto?!", ela perguntava me puxando. "Pois por mim ele pode vir! Eu taco uma pedra na cabeça dele", escutava uma das crianças falando depois que já havíamos corrido. Comigo, pensava que tipo de inferno era aquele, de se esconder e sentir medo. "Por que não o matamos e libertamos a rua do medo?".  
-Ela tacou uma pedra nele, é doida! Mas bem feito! - minha prima dizia sobre a vizinha de pele mais escura e com estigma de adotada, de uma senhora da rua mais abaixo, amiga da vovó.
-E se contássemos para o vovô? Ele tem um revolver, talvez desse um jeito... - eu sugeria com medo.
-Você tá doida! Eles são amigos, ele nem sonha que ele é desse jeito!
Foi então que eu entendi que éramos nós que estávamos mal assombradas.
Outro dia, minha prima e eu balançávamos na cadeira de balanço, enquanto minha irmã fazia alguma coisa no quarto, de repente, um velho de cabeça branca, abria o portão lá da garagem e caminhava em passos lentos para a entrada.
-Quem é esse senhor que tá vindo?- eu perguntava.
-O quê?! - minha prima arregalava os olhos e se assustava.
-O que?!
-Shiiiiii, é o véi saliente! Meu deus, e a vovó saiu! 
Meu coração disparava, enquanto minha prima puxava minha mão e me levava para o banheiro dos fundos da casa. 
-Fica quietinha! Não fala nada.
Escutávamos então os passos do velho pela casa. Parecia um filme de terror. Eu preocupada com minha irmã, perguntava o que faríamos se ela saísse do quarto e se deparasse com ele. 
-Shiiiii, calma! Vamos espiá-lo...
Abríamos a porta do banheiro com calma e colocávamos as duas, as cabeças para fora da porta. Uma em cima e outro embaixo. O velho abria a geladeira, fechava, e tomava uma xícara do café que estava na mesa. Olhava o relógio na parede, suspirava, pensava sozinho olhando para algum lugar. Usava uma calça escura, e uma camisa branca de manga comprida que eu nunca mais esqueci. Tinha cabelos brancos só dos lados, todo careca no meio da cabeça. E antes que eu pudesse gravar seu rosto, só me lembro de uma expressão rabugenta, e que ele começou a olhar fixo para algum lugar. Fechávamos a porta rapidamente sem barulho e tampávamos nossa respiração. Escutávamos passos dele indo embora.
-Ele viu a gente será? - eu perguntava baixinho. 
-Acho que não, fica quieta...
-Ele ta indo embora parece... 
-Parece que já, mas vamos esperar um pouco.
Contamos praticamente até dez e saímos na ponta dos pés do banheiro. Minha prima olhava a xícara que ele havia tomado café e dizia "Folgado! Eca, que nojo!". 
Íamos até a sala e lá estava minha irmã mexendo com papéis e canetas.
-Você viu que ele veio aqui?! - minha prima perguntava
-Quem?
-O velho saliente! - eu dizia.
-Aqui? 
-Sim! Ele entrou aqui, a gente correu pro banheiro, ficamos preocupadas de você sair e dar de cara com ele, o que você estava fazendo?! - minha prima perguntava.
-Lá dentro do quarto, brincando.
-Sortuda! - eu dizia.
-Já pensou se ele te visse?! - minha prima indagava.
-Tem certeza que era ele? - minha irmã retrucava.
-Rum, vamos trancar essa porta... foi por pouco!- minha prima orientava.
Não sei que tipo de amizade ele tinha com o vovô, nem porque não poderíamos contar que tínhamos medo dele. Vovó nunca explicou direito, e quando chegou da rua, contamos o que havia acontecido e minha prima demonstrava tudo que ele tinha feito numa imitação até cômica. "Ainda bem que vocês se esconderam", ela disse como se fôssemos muito espertas. Foi quando eu percebi que independente do velho, era tudo aquilo que me deixava com medo.Vovô nunca saberia nada a respeito.