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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Depois da chuva do Caju


Quase atropelada, por viver no mundo da lua, agradeceu rapidamente ao céu por estar sempre de olho nela quando ela menos pensava em sorte e por sua 'não-morte' ter acontecido imediatamente. Quando deparou-se a sorrir de alívio, as nuvens gordas de orgulho pelo não acontecimento de sua própria tragédia, e o carro veloz pro seu destino de 'por um triz', deixaram a sua pueril vista uma figura estranha e sombria.
É preciso deixar claro que ela não escolheu a solidão, foi a solidão que a escolheu.
Era uma figura que parecia estar morrendo de sede e fome, assustada, vidrada, porém forte. O encontro de olhares entre as duas, era surpreso tanto de um lado como do outro, e sabiam por uma questão irracional de que ninguém mais ali na rua podiam se ver do mesmo jeito que elas.
Entenderam juntas que seus olhos eram especiais. De tanto a solidão espiar a vida humana, acabou com algumas de suas imperfeições, a solidão meus caros: estava em dúvida se e garota podia mesmo percebê-la ali ou era apenas um devaneio pueril da idade que por coincidência ela era acolhida como fantasia. Foi então que a garota lhe disse seu primeiro "não". Ela realmente podia vê-la sem sombra de medos.
Dali adiante devo admitir que a garota não brincava com todas aquelas bonecas sozinhas. A solidão estava sempre ali, do seu lado. Não podíam ser amigas, mas mantinham um relacionamento baseado na curiosidade.
Tinham uma espécie de contrato, a garota era capaz de enfrentá-la olho no olho e continuar concentrada no ritmo que sua pobre infância proporcionava, dando atenção a todas as bonecas, sem atrapalhar o gosto da brincadeira, e a solidão sempre na pretensão de fazê-la enxergar seu lado ruim que despertasse seu medo que fizesse a garota sumir, correr, reaparecer por ai contando para algumas pessoas que olhar, enxergar e perceber a solidão nos levava a um buraco negro que atrapalhava os pensamentos para todo o sempre. 
Como é que Deus foi capaz de lhe dar aquele grande par de olhos especiais e impressionados sem me temer ? Pensava a solidão.
Como é que Deus foi capaz de me dar uma visão especial da qual não posso ser amiga ? Pensava a garota.
Numa dessas chuvas do caju, a menina cresceu alguns centímetros, perdendo um pouco a sensibilidade da solidão. A solidão apesar de nunca ter sido teoricamente sua amiga, sentiu do seu próprio veneno e estaria pela primeira vez sozinha. A menina começou então a ter medo do escuro e seu par de pernas magrelas ganharam características medrosas, as quais ainda nunca haviam entrado em sincronia com o par de olhos, aprenderam a correr de tal forma que antes que o óbvio e não óbvio pudesse ser visto e entendido ela já estava lá na frente.
As pernas da garota tinham agora o controle da maneira mais covarde que seus olhos não poderiam ver. As pernas podiam levá-la pra qualquer lugar, e seu par de olhos especiais jamais poderiam esclarecer todos aqueles escuros e brêus que ela tanto evitava e corria, de certa maneira até meio enrustida pois guardava umas boas pitadinhas de desejo de ficar, ficar, e ficar e enfrentar aqueles escuros e brêus que talvez fossem besteira depois do pânico, e pura calmaria e certeza de que o nada era o nada mesmo, e a fantasia, onde os medos dormiam, eram pura coisa criada da nossa vida vazia.
O que ninguém sabe é que a solidão estava em todos esses brêus; de alguma maneira sensitiva ainda conseguia se comunicar com a menina, mas aqueles grandes e belos par de olhos eram agora perdidos, inseguros e quase inúteis com aquele rápido e desembestados par de pernas da juventude...não demorou muito, depois de mais umas três chuvas do Caju, foi inevitável...nem mesmo no medo sincronizavam.