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terça-feira, 31 de julho de 2012

Ninguém paga com a lingua

"Só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre." Albert Einstein



Assim que entendi que existia, fui ficando cada dia mais perdida, e sem pensar fui enquadrando os lugares, as pessoas, situações e opiniões. Dei nome a todas as cores, cheirei algumas flores e onde não tinha mapas eu fui fazendo uma trilha para cada coisa e jeito, porque era demais pra mim saber que eu não sabia nada, era demais pra mim saber que pra quem quer que eu perguntasse, todo mundo do mundo também era desinformado e criador, como eu.
E a minha busca pra não ser tão ignorante, parecia cada dia mais vazia, porque cada dia eu aprendia e desaprendia numa graça desnaturada que atrapalhava todo o meu percurso. E todas as regras que ia anotando e formulando de como as coisas podiam funcionar, ser e aparentar levavam há uma razão exata que lá na frente era desmerecida. 
Por determinado tempo, algumas coisas sempre se encaixavam com as regras, “ eu não disse, eu não disse!” Ai depois vinha a vida com suas situações complexas, profundas, inexatas, trazendo pessoas ainda mais complicadas, profundas e inexatas que transformavam meu tabuleiro numa serie de jogadas que colocavam meu rei a toda hora em cheque. E entendi que peça tocada era peça mexida, pois qualquer lado que meu rei  quisesse fugir , estaria sem a própria cabeça e minhas respostas foram sendo capturadas e substituídas por mais perguntas, perguntas, e perguntas! “eu não disse, eu não disse?” 

Sai no primeiro L a cavalo, carregando perguntas eternamente sem respostas, perguntas que vão me seguir e acabrunhar a vida inteira e perguntas que já não me servem como da primeira vez, e que são as mesmas, mas sempre mudam todo o sentido que traziam ao passar do tempo e experiência de vida.
Sofro. Mas tudo isso em decorrência da grande ilusão que eu mesma me coloco. Eu não posso enganar a vida , e a vida não existe pra me provar alguma coisa, me perseguir ou também me enganar. Ninguém paga com a lingua, apenas mudamos constantemente, não fomos feitos pra ficar parados e exatos.  

Quando penso que sei quem sou, mudei de tarde, e quando estou quase chegando onde queria chegar, já não me cabe naquele lugar, e por mais que eu seja vítima hoje,  amanhã não vai dar mais pra estar, porque a gente aprende. E quando a gente aprende, a gente está sozinho, e sozinhos já estamos desde que saímos de dentro dela e partiremos do mesmo modo, mas completamente diferente daquele que veio. 

E somos prepotentes, meu Deus como somos prepotentes! Continuamos mesmo tendo quebrado a cara, o coração e a cabeça umas duzentas vezes, seguindo sem escrupulos, pensando que sabemos muito, pensando que somos reis, até que  a vida nos enfrente novamente e diga "Xeque" ,  vai com calma que  as coisas são muito mais sinistras do que sua vã filosofia pretende enxugar.
Carrego mil manchas e costuras no peito que  me tornam melhor e mais sabida, carrego mil palavras e tormentos que me matam e renascem todos os dias, aprendi a ter um monte de sonhos no bolso, se aparecerem novas pessoas, é lucro. Se não aparecer, continuo mochileira da vida, porque talvez seja isso que a vida queira de mim, que eu seja mochileira, não pare quieta, não aceite, não conclua, não me enquadre, não me deixe nunca em paz, até que a morte nos separe.


(Fê também fica com a pureza e a resposta das crianças, "é bonita, é bonita e é bonita.")

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Quando atingimos um nível de tristeza maior do que o saudável

Um dia após o meu aniversário do ano passado, eu que nem gostava de assistir tv, liguei pra me distrair das turbulências e monstros que ocupavam minha cabeça e tive o desprazer de saber a notícia de que Amy Winehouse havia morrido.

Eu não era fã de carteirinha da Amy, mas sempre me emocionava muito com seu timbre de voz, eu gostava do talento da moça,  era fã do seu cabelo anos 60, do delineador nos olhos, dos laços e todo seu estilo vintage, aquilo tudo que compunha a Amy, se não fosse o bad romance dela, e as drogas, poderiam ter sustentado até hoje uma grande personalidade e talento.

Como a minha fase era meio pra baixo, achei que a morte da Amy só podia ser mais um jeito do universo me deixar ainda mais triste, e pensava: "Como é que tantas coisas ruins podiam estar acontecendo ao mesmo tempo, e até uma das minhas cantoras favoritas partir de presente de aniversário?"

Eu estava com a alma mutilada, tive uma conversa com meu pai dentro de um carro, sobre a minha falta de perspectiva, minha tristeza, e de como ele tinha uma filha covarde e não sabia, e enquanto eu falava eu sentia vários cães dentro do estômago com uma fome que ninguém do mundo poderia cessar, e sentia uma dor na pele, uma queimação na cabeça e uma extrema dó de mim mesma.

Não é que a morte da Amy pareceu quase um chute nos meus seios, era só que: "Hey, está vendo? Algumas pessoas não suportam, se entregam e morrem." A música do meu celular, por humor (degradante) e pura coincidência, era "Rehab".  E toda vez que meu celular tocava, eu invocava Amy, e ela me dizia:

"They tried to make me go to rehab
But I said 'no, no, no'"

e eu com a minha insistência de permanecer na solidão, fingia que Amy era uma amiga que gostava de cantar pra mim e uma mulher que podia me entender perfeitamente naquele momento.

"Yes, I've been black, but when I come back
You'll know-know-know"

Não conseguia comer direito, mandaram vovó me visitar, ela fazia alguns caldos e vitaminas pra mim, que acho que foi o que me manteve firme naquele mês tenebroso. (Incluindo a alegria das crianças do projeto "mediadores de leitura" que eu insistia em terminar, mesmo com as calças caindo de tanta magreza.)

Comer era horrível, me dava ânsias terríveis de vômito,

-Tia por que a senhora não vai tomar injeção no postinho? - Perguntava um menino da escola que eu trabalhava como mediadora, que havia me seguido e me visto vomitando no lixeiro do lado de fora da sala.

Eu sorri, uma injeção podia ser mesmo tudo que eu mais precisasse. Quando a gente é criança a injeção sempre serve de ameaça pra ficarmos melhores, ele sorriu,

-Minha irmã tomou, nem doi tanto assim, ela tava vomitando igual a senhora. É ruim ne tia? Olha se a senhora quiser eu pergunto pra minha mãe o endereço certinho! Não dói desse tanto.

Eu sorri de novo, percebi o quão patética eu parecia estar naquele estado, mas reconhecer nem sempre é um passo quando atingimos um nível de tristeza maior do que o saudável e já não dava pra calar os cães agitados dentro do estômago, eles já estavam grandes, fortes, quase me dominando e não demorou muito eu estava pesando nada mais nada menos que 42 kilos.

Perdi meu interesse pelo telefone, pela internet, pela família, e não sentia culpa nenhuma em estar sendo tão egoísta e ingrata...entretanto, aquela música, aquela música que tocava sobre Reabilitação no meu celular, sempre me deixava mais perto de uma Fernanda que em mim era bem mais divertida. E talvez por isso eu não atendesse os telefonemas, pra tentar me encontrar, me procurar, me reabilitar.

Fui levando bronca por não "ouvir" o celular, fui brincando de doida, invocando mortos, cantando pra não dar satisfação, e era assim que eu achava que poderia começar a compreender os fatos e pensar sério sobre o caminho de me reabilitar.

Quando meu celular tocava, eu me lembrava que Amy estava morta, e não atendia pra ouvi-la contar-me sobre a tal reabilitação. Vovó fazia uma massagem nas minhas costas quando eu chegava da mediação, e começou a me contar:

-Quando eu tinha 15 anos, minha mãe não estava mais entre nós e eu trabalhava tanto, mais tanto...que não queria mais viver.

-A senhora sentia saudades dela?

-Eu sentia vontade de ir embora, pegar minhas coisas e fugir. Papai não era gente! Mas não conseguia ir embora sabendo que meus irmãos iriam ficar ali largados. Então, depois de uma trouxa de roupas que lavei eu tomei o veneno de passar no milharau.

-A senhora tomou veneno?!

-Sim, mas não morri, talvez eu tenha tomado uma quantidade pequena, não me lembro mais. Mas me lembro que passei muito mal, muito mesmo! Tomei leite adoidado, não tinha médico, não tinha remédio, não tinha como aquela agonia passar, e eu mesma havia me colocado naquela agonia, aquilo me deixou muito arrependida, e tive que esperar aquele efeito passar caladinha.

-Nossa vó, e a senhora não contou pra ninguém que tinha tomado o veneno?

-Não, até porque eu me arrependi muito, estou te contando pra dizer que quando a gente é jovem vemos a tristeza maior do que a própria vida, e não é bem assim.


Na verdade Amy não era bem uma companhia, Amy não sabia nem que eu existia, Amy talvez fosse a versão de quem eu não queria ser naquele momento, mas que era o único papel que cabia.

Amy se matou aos poucos, Amy era linda e desistiu dos próprios sonhos quando não decidiu ter amor próprio, quando preferiu as drogas, o alcool, a magreza, os micos e a mediocre destruição de si mesma, e por mais que fosse famosa, talentosa, agora estava morta.

Depressão não é frescura, depressão pode não ter cura, depressão pode começar sendo apenas um estado de humor, depressão pode nunca passar, mas tem tratamento, tem jeito, tem remédio, tem doutor. Pra morte é que ainda não se tem nada.

Não é fácil admitir-se triste, não é fácil admitir-se covarde, desistimulada, fraca, inútil, sem jeito, sem sonhos, sem expectativas, mas por alguma razão o jeito que vovó persistia em me agradar com as comidinhas, dormir abraçada comigo, ou me revelar tais segredos, fez com que eu desse conta de ir ao shopping mediar a minha última história do projeto para as crianças.

E quando voltávamos, percebi que meu celular sumiu, e eu não podia mais ouvir Amy sobre a tal reabilitação, começava agora uma nova fase, parar de cantar sobre reabilitação e agir em prol dela.


(Fê aprende a gostar de viver todos os dias, e acredita e toma antidepressivos numa boa.)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Vou morar no rio

Quando eu era pequena, e chegávamos na beira de um rio, quando tudo ficava em silêncio eu dizia: "Ei vou embora, vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés." e na minha imaginação eu ia indo embora sem saber até quando ou se voltaria, e entrava no rio de roupa e tudo deixando a cabeça por último, seguindo lentamente na certeza de que via o mundo pela última vez e a medida que a água tocava cada centimetro das minhas pernas, tudo que estivesse ao meu redor ia se despendido, e eu tinha certeza de que aquela era a última vez que eu sentiria aquelas cores, barulhos e habitat completamente seca. 

A sensação de estar molhada passava a ser normal, debaixo da água eu me tocava e sentia que jamais estaria seca outra vez. Agora meu mundo era debaixo de água, sendo portanto estar seca um sinal de estranhamento. E a medida que a água vinha entorpecer meus buracos, quando eu já não lutava contra o ar, eu virava quase uma espécie de peixe, e minha visão limitava-se em tudo meio verde, amarelado, e preto caso eu quisesse nadar onde a luz do sol não era capaz de chegar. Onde os monstros do rio, as cobras e os afogados poderiam estar. Meu pulmão se transformava, minhas próprias bolhas de socorro desesperadas, iam desaparecendo enquanto latejavam por todo o meu caminho. 

Passaria a ser comida de peixe, caso eu encontrasse um maior que eu, comeria alguns, numa dieta quase forçada, e seria vizinha de alga esperando a visita de algum pescador enfeitiçado, porque eu seria amiga da Yara, a qual inclusive eu pediria o pente emprestado, porque viveria de cabelo embaraçado. Ela me ensinaria a não ter coração e ser sempre sedutora, e eu seria um peixão.

"Ei vou embora, vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés.", mas quando a areia sumia, meus braços davam um jeito de me salvar, as bolhas não paravam de chorar, meus pés não se cansavam de procurar por terra e meu cabelo sempre molhado pesava até incomodar. Alguém então estendia a mão, eu puxava querendo estar viva e completamente seca. 

Ai eu não discutia mais sobre a minha covardia de não ter virado peixe. Talvez Yara não fosse legal, ela parecia ser muito ciumenta e amargurada, quem sabe nunca quisesse me emprestar seu pente. Como ia ser também viver sem ver vermelho? Dentro do rio as cores são tão confusas e limitadas, inclusive os cardápios...também não quero nem imaginar como deve ser de noite, tudo escuro, mal assombrado, frio, gelado...voltei. 

Vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés, porque vou  entrar no rio sabendo que sei nadar, e assim é bem melhor e possível voltar.