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quinta-feira, 12 de julho de 2012

Vou morar no rio

Quando eu era pequena, e chegávamos na beira de um rio, quando tudo ficava em silêncio eu dizia: "Ei vou embora, vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés." e na minha imaginação eu ia indo embora sem saber até quando ou se voltaria, e entrava no rio de roupa e tudo deixando a cabeça por último, seguindo lentamente na certeza de que via o mundo pela última vez e a medida que a água tocava cada centimetro das minhas pernas, tudo que estivesse ao meu redor ia se despendido, e eu tinha certeza de que aquela era a última vez que eu sentiria aquelas cores, barulhos e habitat completamente seca. 

A sensação de estar molhada passava a ser normal, debaixo da água eu me tocava e sentia que jamais estaria seca outra vez. Agora meu mundo era debaixo de água, sendo portanto estar seca um sinal de estranhamento. E a medida que a água vinha entorpecer meus buracos, quando eu já não lutava contra o ar, eu virava quase uma espécie de peixe, e minha visão limitava-se em tudo meio verde, amarelado, e preto caso eu quisesse nadar onde a luz do sol não era capaz de chegar. Onde os monstros do rio, as cobras e os afogados poderiam estar. Meu pulmão se transformava, minhas próprias bolhas de socorro desesperadas, iam desaparecendo enquanto latejavam por todo o meu caminho. 

Passaria a ser comida de peixe, caso eu encontrasse um maior que eu, comeria alguns, numa dieta quase forçada, e seria vizinha de alga esperando a visita de algum pescador enfeitiçado, porque eu seria amiga da Yara, a qual inclusive eu pediria o pente emprestado, porque viveria de cabelo embaraçado. Ela me ensinaria a não ter coração e ser sempre sedutora, e eu seria um peixão.

"Ei vou embora, vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés.", mas quando a areia sumia, meus braços davam um jeito de me salvar, as bolhas não paravam de chorar, meus pés não se cansavam de procurar por terra e meu cabelo sempre molhado pesava até incomodar. Alguém então estendia a mão, eu puxava querendo estar viva e completamente seca. 

Ai eu não discutia mais sobre a minha covardia de não ter virado peixe. Talvez Yara não fosse legal, ela parecia ser muito ciumenta e amargurada, quem sabe nunca quisesse me emprestar seu pente. Como ia ser também viver sem ver vermelho? Dentro do rio as cores são tão confusas e limitadas, inclusive os cardápios...também não quero nem imaginar como deve ser de noite, tudo escuro, mal assombrado, frio, gelado...voltei. 

Vou entrar no rio de roupa e tudo sem ter medo da areia sumir dos meus pés, porque vou  entrar no rio sabendo que sei nadar, e assim é bem melhor e possível voltar.

Um comentário:

Unknown disse...

A gente 'entra no rio' pra esquecer, pra não falar, pra não ouvir. Mas quando a água enche os ouvidos, limita seus passos, te puxa pro fundo notamos o quanto é bom estar em terra firme. Adorei o texto, me remeteu a uma reflexão.