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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Quando atingimos um nível de tristeza maior do que o saudável

Um dia após o meu aniversário do ano passado, eu que nem gostava de assistir tv, liguei pra me distrair das turbulências e monstros que ocupavam minha cabeça e tive o desprazer de saber a notícia de que Amy Winehouse havia morrido.

Eu não era fã de carteirinha da Amy, mas sempre me emocionava muito com seu timbre de voz, eu gostava do talento da moça,  era fã do seu cabelo anos 60, do delineador nos olhos, dos laços e todo seu estilo vintage, aquilo tudo que compunha a Amy, se não fosse o bad romance dela, e as drogas, poderiam ter sustentado até hoje uma grande personalidade e talento.

Como a minha fase era meio pra baixo, achei que a morte da Amy só podia ser mais um jeito do universo me deixar ainda mais triste, e pensava: "Como é que tantas coisas ruins podiam estar acontecendo ao mesmo tempo, e até uma das minhas cantoras favoritas partir de presente de aniversário?"

Eu estava com a alma mutilada, tive uma conversa com meu pai dentro de um carro, sobre a minha falta de perspectiva, minha tristeza, e de como ele tinha uma filha covarde e não sabia, e enquanto eu falava eu sentia vários cães dentro do estômago com uma fome que ninguém do mundo poderia cessar, e sentia uma dor na pele, uma queimação na cabeça e uma extrema dó de mim mesma.

Não é que a morte da Amy pareceu quase um chute nos meus seios, era só que: "Hey, está vendo? Algumas pessoas não suportam, se entregam e morrem." A música do meu celular, por humor (degradante) e pura coincidência, era "Rehab".  E toda vez que meu celular tocava, eu invocava Amy, e ela me dizia:

"They tried to make me go to rehab
But I said 'no, no, no'"

e eu com a minha insistência de permanecer na solidão, fingia que Amy era uma amiga que gostava de cantar pra mim e uma mulher que podia me entender perfeitamente naquele momento.

"Yes, I've been black, but when I come back
You'll know-know-know"

Não conseguia comer direito, mandaram vovó me visitar, ela fazia alguns caldos e vitaminas pra mim, que acho que foi o que me manteve firme naquele mês tenebroso. (Incluindo a alegria das crianças do projeto "mediadores de leitura" que eu insistia em terminar, mesmo com as calças caindo de tanta magreza.)

Comer era horrível, me dava ânsias terríveis de vômito,

-Tia por que a senhora não vai tomar injeção no postinho? - Perguntava um menino da escola que eu trabalhava como mediadora, que havia me seguido e me visto vomitando no lixeiro do lado de fora da sala.

Eu sorri, uma injeção podia ser mesmo tudo que eu mais precisasse. Quando a gente é criança a injeção sempre serve de ameaça pra ficarmos melhores, ele sorriu,

-Minha irmã tomou, nem doi tanto assim, ela tava vomitando igual a senhora. É ruim ne tia? Olha se a senhora quiser eu pergunto pra minha mãe o endereço certinho! Não dói desse tanto.

Eu sorri de novo, percebi o quão patética eu parecia estar naquele estado, mas reconhecer nem sempre é um passo quando atingimos um nível de tristeza maior do que o saudável e já não dava pra calar os cães agitados dentro do estômago, eles já estavam grandes, fortes, quase me dominando e não demorou muito eu estava pesando nada mais nada menos que 42 kilos.

Perdi meu interesse pelo telefone, pela internet, pela família, e não sentia culpa nenhuma em estar sendo tão egoísta e ingrata...entretanto, aquela música, aquela música que tocava sobre Reabilitação no meu celular, sempre me deixava mais perto de uma Fernanda que em mim era bem mais divertida. E talvez por isso eu não atendesse os telefonemas, pra tentar me encontrar, me procurar, me reabilitar.

Fui levando bronca por não "ouvir" o celular, fui brincando de doida, invocando mortos, cantando pra não dar satisfação, e era assim que eu achava que poderia começar a compreender os fatos e pensar sério sobre o caminho de me reabilitar.

Quando meu celular tocava, eu me lembrava que Amy estava morta, e não atendia pra ouvi-la contar-me sobre a tal reabilitação. Vovó fazia uma massagem nas minhas costas quando eu chegava da mediação, e começou a me contar:

-Quando eu tinha 15 anos, minha mãe não estava mais entre nós e eu trabalhava tanto, mais tanto...que não queria mais viver.

-A senhora sentia saudades dela?

-Eu sentia vontade de ir embora, pegar minhas coisas e fugir. Papai não era gente! Mas não conseguia ir embora sabendo que meus irmãos iriam ficar ali largados. Então, depois de uma trouxa de roupas que lavei eu tomei o veneno de passar no milharau.

-A senhora tomou veneno?!

-Sim, mas não morri, talvez eu tenha tomado uma quantidade pequena, não me lembro mais. Mas me lembro que passei muito mal, muito mesmo! Tomei leite adoidado, não tinha médico, não tinha remédio, não tinha como aquela agonia passar, e eu mesma havia me colocado naquela agonia, aquilo me deixou muito arrependida, e tive que esperar aquele efeito passar caladinha.

-Nossa vó, e a senhora não contou pra ninguém que tinha tomado o veneno?

-Não, até porque eu me arrependi muito, estou te contando pra dizer que quando a gente é jovem vemos a tristeza maior do que a própria vida, e não é bem assim.


Na verdade Amy não era bem uma companhia, Amy não sabia nem que eu existia, Amy talvez fosse a versão de quem eu não queria ser naquele momento, mas que era o único papel que cabia.

Amy se matou aos poucos, Amy era linda e desistiu dos próprios sonhos quando não decidiu ter amor próprio, quando preferiu as drogas, o alcool, a magreza, os micos e a mediocre destruição de si mesma, e por mais que fosse famosa, talentosa, agora estava morta.

Depressão não é frescura, depressão pode não ter cura, depressão pode começar sendo apenas um estado de humor, depressão pode nunca passar, mas tem tratamento, tem jeito, tem remédio, tem doutor. Pra morte é que ainda não se tem nada.

Não é fácil admitir-se triste, não é fácil admitir-se covarde, desistimulada, fraca, inútil, sem jeito, sem sonhos, sem expectativas, mas por alguma razão o jeito que vovó persistia em me agradar com as comidinhas, dormir abraçada comigo, ou me revelar tais segredos, fez com que eu desse conta de ir ao shopping mediar a minha última história do projeto para as crianças.

E quando voltávamos, percebi que meu celular sumiu, e eu não podia mais ouvir Amy sobre a tal reabilitação, começava agora uma nova fase, parar de cantar sobre reabilitação e agir em prol dela.


(Fê aprende a gostar de viver todos os dias, e acredita e toma antidepressivos numa boa.)

Um comentário:

Cris Carvalho disse...

Vim correndo pra saber quem era a tal da dona moça que escreveu bonito, mas doído, lá em casa.

Na vida, Srta Fê, dá pra reiventar, renascer, repaginar ... se fazendo todos os dias como uma fênix renascida das cinzas. A gente cai, rala o joelho, levanta e cai de novo ... mas dentro, cada vez mais forte, a gente descobre o que é essência e o que basta, sem muitos rodeios e enfeites.

Apesar de, continuamos. Nessa estrada que não se sabe onde vai dar, mas acredito que é bonito, ito, ito, ito...

PS:Se vc acredita, é tudo verdade.

beijocas da Cris!