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sábado, 22 de março de 2014

O desfile na cozinha, daquelas garotas oferecidas.



"Dá licença. Eu to conversando."
Parecia estar sempre se jogando. Conversava tardes inteiras com eles, e quando os via ficava triscando, insinuando, triscando, querendo dizer aquilo, brincando, escondendo, triscando, como um teste, como uma manhosa. Depois eu me mudei. Talvez você iria se mudar também, e eu  poderia te dizer coisas que eu já havia vivido, mas eu incrivelmente não me sentia a vontade pra compartilhar sobre esse ritmo, nem dizer o que viria depois. Você também haveria de ter vividos coisas que me ajudariam a sair do casulo, mas eu não perguntava. Algumas vezes, eu me lembrava do desfile na cozinha, um que você fez. O desfile na minha lembrança não era de muros enormes, dos caminhos que seguimos construídos por nossas diferenças e puberdade cruel e confusa. Eram engraçados de serem lembrados.
Longe de casa, parecia as vezes sentir minha falta pela internet, mas toda vez que eu chegava de viagem, você nem me abraçava. Éramos duas desconhecidas. Algum tempo atrás, eu tão fodida por um desamor, me perguntava porquê, numa raiva e tristeza trabalhosa, e você apenas perguntava sinistra:
 "vai morrer por causa de homem?" 
Talvez não fosse estupidez, talvez fosse uma bandeira levantada pra que a comédia fosse bem maior que o drama. Prefiro pensar que sejas simplória demais, grosseira, incapaz de se transformar em pessoas num desfile de cozinha. Houve um tempo, que costumávamos admirar os mesmos rapazes, eu costumava comentar de alguns, mas eu nunca, nunca teria coragem. Não demorava muito tempo e lá estava você com eles, sempre dava um jeito de conhecê-los, de rapidamente ter seus contatos na internet, descobrir da vida deles, do que é que eles gostavam, estudar tudo isso e compartilhar com eles, de um jeito que em alguns dias, seria muito mais interessante, e conversava, conversava tardes inteiras com eles. Nada era muito duradouro, talvez você tivesse medo, ou talvez eles eram capazes de dizer não. Sei que não durava muito tempo, e as peças continuavam a se mover,  a impressão que se tinha era de que além das peças você também estava sempre se jogando, triscando, insinuando, triscando, querendo dizer aquilo, triscando, como um teste pra saber dos seus limites e se eram mesmo capaz de dizer não.
Dentro de casa, anos em que nossas pedrinhas do peito ainda começavam a florescer, a casa inteira escura, tínhamos insonia juntas. Era uma época meio moralista da nossa juventude que começava, nossos cabelos eram horríveis apesar dos cuidados. Íamos pra cozinha, e eu me sentava no balcão da pia como se ainda não menstruasse. A casa continuava toda escura, apenas a luz da cozinha para o nosso show da madrugada. Inventávamos alguma coisa pra comer e enquanto esperávamos ficar pronto, você imitava suas coleguinhas oferecidas da escola num desfile imaginário no meio da cozinha, e eu morria de rir. 
Eu não sabia se era por causa da imitação, ou porque você era muito louca e bonita com raiva dessas coleguinhas idiotas. Você mexia na sua camisola pra fazer a pança de uma das colegas que falava demais, e dizia "Olha o jeito que ela anda" e desfilava desleixada da cesta de frutas até o fogão com uma careta frenética e um ruído muito doido, pra tentar me mostrar o quanto ela podia ser bem mais burra e ridícula do que eu podia imaginar. 
Mesmo sendo madrugada, eu nunca aprendi a prender minhas gargalhadas por respeito a ninguém, sempre fui sem costume, e papai soltava um berro sem noção sobre sermos sem noção lá do escuro da casa. Nos acanhávamos, e prendíamos as bocas com as mãos. Quando a comida tava quase pronta eu me atrevia a perguntar "Como ela andava mesmo?" e você corria pro palco de desfile, arrumava a camisola com o comentário "esse aqui é o bucho" e desfilava. 
Depois de alguns verões, sua postura me intimidava toda vez que saíamos. Quando suada, já amarrava o cabelo, nunca ficava feia, nunca. É que o formato do seu rosto é daqueles que se pode prender o cabelo, do formato que não precisa dos cabelos pra ser bonita ou vista, e suas orelhas são pequenas, seu nariz é bem feito, você pode sempre prender os cabelos. Você triscava o tempo todo neles, o tempo todo, quase como uma provocação do quanto eles eram tão fáceis, como um teste pra saber dos limites deles e se eram mesmo capazes de dizer um não. "Peças insignificantes do jogo da noite" eu pensava, "não toque nela!", defendia com unhas e dentes. E você continuava a dançar me deixando na dúvida se queria mesmo ser defendida ou se na verdade eu estava atrapalhando seu deleite e entrega.  
Anos mais tarde, acho que eu  já podia dançar livremente um pouco. Mas quando estava com você, ficava ali reparando se a quantidade de álcool que consumia era porque gostava ou porque queria chamar a atenção de que era forte. Você ficava cada vez mais ousada, cada vez mais fácil, cada vez mais... "puta, ela tá é achando graça?", e você sorria pra mim descarada. Parecia estar sempre se jogando, não se importava... e eu, bom, eu definitivamente talvez tivesse virado uma cozinha.