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sábado, 30 de novembro de 2019

Meu lugar

Com tudo quebrado, fui passando pela casa e ouvindo os fantasmas conversarem. Me lembraram de uma época que dava quentinho no coração. Minha irmã e eu dormíamos na cama de casal com papai e mamãe. Anos 90. 

Depois ganhamos dois colchões de solteiro. Eram azuis, feios e com uma estampa de planetas. Era mais legal dormir com eles, do que ficar sozinha no espaço. Então dormíamos inicialmente naquela galáxia, mas de madrugada corríamos pra cama deles. 

Passeando pela quebradeira da casa, também lembrei das árvores que já existiram nessa casa. Houve uma época que tinha várias no corredor da mangueira, deixavam a casa escura. Lembro dos meus pés pequenininhos pisando nas raizes e desequilibrando-se de manhã cedinho. E de uma frutinha do tamanho de uma ervilha que a árvore deixava sempre no chão e eu gostava de abrir pois pareciam bolinhas com tampas. Nina jogou o almoço fora ali uma vez, pra trapacear e comer coisas doces sem a refeição. 

Também teve plantas na frente que eu papeava, davam flores. Teve um pé de manga atrás que era meu local de trabalho, bem embaixo dele eu ficava desenhando histórias e inventando pessoas e dramas. Minhas mãos ficavam cheias de pontinhos coloridos de canetinha. Eu realmente achava que era um trabalho. Me comprometia sempre em um horário do dia a ficar ali escrevendo. As vezes quando cansava eu olhava pra cima e via as folhas balançando. Até hoje me flagro procurando tranquilidade olhando pra cima de uma árvore. É alguma coisa pra me reconectar com algo que eu não sei o que é, mas que me acalma de imediato. Folhas, no alto, balançando... um mantra, um feitiço, um artifício. 

Vendo as paredes quebradas, foi que lembrei de quarto que não era quarto, banheiro que não existia, e até de um poço. Minha casa tinha poço! Onde eu e minha irmã fazíamos shows e espetáculos em cima da tampa de mármore. “Uma hora essa tampa quebra e vocês duas caem lá dentro”, um adulto dizia. “Aí a gente escala ele!”, eu respondia me achando muito aventureira. “Eu não to nem aí, eu não tenho medo! Eu sei nadar!”, minha irmã completava e dançava comigo. As vezes ficavam roupas passadas e dobradas em cima, depois ele sumiu, depois virou mesa no quintal. 

No muro do quintal, inclusive, lembro do meu nome não completo no muro. Sempre me perguntava porque tinha logo meu nome na parede. Outras vezes eu achava que a Fernanda do muro era outra pessoa que colocou o nome ali pra que eu pensasse que era o meu e que saiu às pressas e não terminou de dizer o que queria. Agora me pergunto se essa memória é verdadeira? Era meu mesmo?! 

Também teve cachorros no fundo dessa casa, muitos... Suzi, Kiara, Zira, Maradona, Toty, Quincas...e uma placa lá fora com um cachorro feroz ilustrado. Me explicaram que era pra espantar ladrão, “cuidado com o cão”. 
Também teve apagão nessa casa, perguntei de quem era a culpa, era de um tal de Fernando Henrique Cardoso. Teve vizinho rindo e conversando na calçada, teve queda de bicicleta, cachumba, piolho, catapora espocada na barriga, ralados...

Tinha um canto nessa casa que cabia eu e minha irmã de costas. Papai pedia pra fecharmos os olhos, pedia que virássemos de costas e que adivinhássemos o que ele trouxe depois de um dia cheio no Banco do Brasil. Ele colocava algo em nossas mãos. Um dia era um apito, uma mãozinha melequenta que pregava na parede, um pirulito ou um bombom do fofão -horrível pois parecia chocolate molhado, mas que sempre éramos gratas por causa de todo o ritual de adivinhação. 

Teve muitas paredes nessa casa que dei aulas de português, história, filosofia e artes... Adorávamos brincar de escolinha, riscávamos também os livros do escritório. Pais professores, sempre parecíamos estar mais perto deles quando os imitávamos. Um dia ganhamos um quadro! Dia emocionante, não podia mais riscar as paredes, papai e mamãe disseram. Minha irmã desenhou os países, mostrou porque o mico leão dourado estava em extinção, e explicou matemática e a independência do Brasil. “Olha Nanda, a Itália é igualzinho uma bota de salto que tu desenha!”, me mostrava empolgada. 

Ah, minha casa, nossa casa... houve tempos de também não ser mais minha. Houve tempos de não querer vê-la, de sentir saudades, da chegada dos meninos, de se reconectar e voltar a lembrar porque gosto tanto dela. Agora é tempo de arrumá-la. Sei que é. De não deixá-la pra trás. De adaptá-la ao que viramos, ao que podemos agora ser. Só aqui tem histórias que o tempo não pode apagar. Meu lugar, meu lugar. 

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Medo de mim

Tenho medo de quem sou quando amo. Perder o controle é um caminho desconhecido. Mas o que é o amor se não uma dádiva que se lança sem saber quando volta inteira? 
Tenho medo de te machucar... Quantos erros eu já cometi? Ganhar no controle, ir pelo caminho mais previsível a ferro e fogo... Mas o que é o desejo se não uma entrega sem saber em qual endereço vai parar? 
Tenho medo de mim, medo de ti, medo de tudo se estabanar. Medo dos meus inimigos terem razão. Medo de nos perdermos pelo caminho para sempre e nunca mais nos dirigirmos a palavra. Medo do poder e dos jogos. Medo de perder o brilho dos olhos e viver aquela inquietude na alma. Tenho medo sabe? De escutar uma música um dia e lembrar de ti aos prantos. Da alegria nunca mais voltar. Do sono chegar e eu acordar. De seres mais um amor desses que veio e se foi. De seres mais uma que fica apenas dentro da minha lembrança. De eu querer comprar uma máquina do esquecimento outra vez e ela não existir no mercado. Medo do barulho do teu choro, do teu carinho infinito, da tua compreensão sub-humana... Um dia tu cansa, um dia tu parte, um dia serei eu sozinha. O abandono me visita pela janela e pelas frestas da porta. Tenho medo de que ele não demore a me visitar. Ri do meu medo, ri do meu desespero. O abandono me conhece, me adoece, quer montar em cima de mim. Sabe onde eu moro, quando namoro, e se eu demoro a me vestir. Ter coragem devia ser mais fácil, mais rápido, mais confortável. Onde se compra um futuro melhor? Como nascemos pra ser feliz? Onde se perdoa com agilidade? Quando conviver será apenas uma etapa? Tu vai aguentando e eu destruindo. Por que não aprendi a construir? Tu vai lamentando e eu desmanchando tudo. Por que não aproveito para ser feliz? Com amor e medo te escrevo. Quanto vale o nosso sossego?