Depois da chuva do Caju


Quase atropelada, por viver no mundo da lua, agradeceu rapidamente ao céu por estar sempre de olho nela quando ela menos pensava em sorte e por sua 'não-morte' ter acontecido imediatamente. Quando deparou-se a sorrir de alívio, as nuvens gordas de orgulho pelo não acontecimento de sua própria tragédia, e o carro veloz pro seu destino de 'por um triz', deixaram a sua pueril vista uma figura estranha e sombria.
É preciso deixar claro que ela não escolheu a solidão, foi a solidão que a escolheu.
Era uma figura que parecia estar morrendo de sede e fome, assustada, vidrada, porém forte. O encontro de olhares entre as duas, era surpreso tanto de um lado como do outro, e sabiam por uma questão irracional de que ninguém mais ali na rua podiam se ver do mesmo jeito que elas.
Entenderam juntas que seus olhos eram especiais. De tanto a solidão espiar a vida humana, acabou com algumas de suas imperfeições, a solidão meus caros: estava em dúvida se e garota podia mesmo percebê-la ali ou era apenas um devaneio pueril da idade que por coincidência ela era acolhida como fantasia. Foi então que a garota lhe disse seu primeiro "não". Ela realmente podia vê-la sem sombra de medos.
Dali adiante devo admitir que a garota não brincava com todas aquelas bonecas sozinhas. A solidão estava sempre ali, do seu lado. Não podíam ser amigas, mas mantinham um relacionamento baseado na curiosidade.
Tinham uma espécie de contrato, a garota era capaz de enfrentá-la olho no olho e continuar concentrada no ritmo que sua pobre infância proporcionava, dando atenção a todas as bonecas, sem atrapalhar o gosto da brincadeira, e a solidão sempre na pretensão de fazê-la enxergar seu lado ruim que despertasse seu medo que fizesse a garota sumir, correr, reaparecer por ai contando para algumas pessoas que olhar, enxergar e perceber a solidão nos levava a um buraco negro que atrapalhava os pensamentos para todo o sempre. 
Como é que Deus foi capaz de lhe dar aquele grande par de olhos especiais e impressionados sem me temer ? Pensava a solidão.
Como é que Deus foi capaz de me dar uma visão especial da qual não posso ser amiga ? Pensava a garota.
Numa dessas chuvas do caju, a menina cresceu alguns centímetros, perdendo um pouco a sensibilidade da solidão. A solidão apesar de nunca ter sido teoricamente sua amiga, sentiu do seu próprio veneno e estaria pela primeira vez sozinha. A menina começou então a ter medo do escuro e seu par de pernas magrelas ganharam características medrosas, as quais ainda nunca haviam entrado em sincronia com o par de olhos, aprenderam a correr de tal forma que antes que o óbvio e não óbvio pudesse ser visto e entendido ela já estava lá na frente.
As pernas da garota tinham agora o controle da maneira mais covarde que seus olhos não poderiam ver. As pernas podiam levá-la pra qualquer lugar, e seu par de olhos especiais jamais poderiam esclarecer todos aqueles escuros e brêus que ela tanto evitava e corria, de certa maneira até meio enrustida pois guardava umas boas pitadinhas de desejo de ficar, ficar, e ficar e enfrentar aqueles escuros e brêus que talvez fossem besteira depois do pânico, e pura calmaria e certeza de que o nada era o nada mesmo, e a fantasia, onde os medos dormiam, eram pura coisa criada da nossa vida vazia.
O que ninguém sabe é que a solidão estava em todos esses brêus; de alguma maneira sensitiva ainda conseguia se comunicar com a menina, mas aqueles grandes e belos par de olhos eram agora perdidos, inseguros e quase inúteis com aquele rápido e desembestados par de pernas da juventude...não demorou muito, depois de mais umas três chuvas do Caju, foi inevitável...nem mesmo no medo sincronizavam.

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