Páginas

terça-feira, 23 de novembro de 2021

|| A cigarra e as garras da ilusão ||

Agachada comendo com o prato entre os joelhos,  uma cigarra veio voando da janela e caiu bem a minha frente no chão. Aquilo mexeu comigo pois não era hora de cigarra cantar ou estar por aí passeando. Não era mais dia, não era tanto noite. Logo, lembrei que elas cantam como você. 

"Um sinal do universo? Será que ela está bem? Será que um dia sentirá minha falta como eu sinto? Será que vai demorar? Quando tudo isso vai passar?"

A cigarra se debatia no chão e pensei quando foi que achei que o amor próprio podia ir embora, quando foi que comecei a deixar de ser eu mesma e me transformar numa mulher que nem eu mesma gosto. Quando foi, meu Deus, que esqueci de nós com aqueles sorrisos encantados das primeiras fotografias e comecei a me preocupar sozinha com a perda e com o futuro.

A cigarra no chão com as patinhas para cima começou a cantar. Eu mastiguei minha comida rapidamente e sem querer viajei para aquele começo. 

Gostei dela quando bati o olho. Lembro que fiquei alegre e olhava fixamente para seus olhos fechados e concentrados na letra da música e no violão (que mais tarde, até foi roubado). Ela parecia triste, misteriosa... isso mexia comigo. Mas também podia ser o dia, eu me dizia enquanto dançava, conversava com minha amiga de infância e corria de um lado paro o outro com as bebidas coloridas. 


Uma outra amiga percebendo que minha felicidade e sinceridade poderia acabar com a noite de alguém, logo descobriu que ela estava acompanhada, que era uma despedida. Eu sorria e pensava que talvez pudesse ser o meu começo, pedi uma foto com ela, tiramos e lhe arranquei um sorriso. Me afastei, fiquei feliz por mais um tempo perambulando, pedi a conta, coloquei os pés no chão e lembrei que o amor não era pra mim.


A cigarra se mexia sem cantar enquanto eu mastigava a comida que nunca terminava. Recordei daquele tempo que me preocupei. Daquele tempo que começou a dar certo e entrei em pânico. Quanto mais eu me perguntava porque gostava dela, menos respostas eu tinha. Vê-la mudava tudo de lugar, acalmava as horas, bagunçava minhas teorias, me fazia esquecer dos problemas do trabalho que estava matando minha saúde mental, me fazia abrir as pernas e também começava a incomodar.  


Ela era despreocupada, lembro das suas sapatilhas de pano furadas, de manchas roxas que sumiam e desapareciam do seu corpo e do seu exame de hérnia no pescoço empoeirado. Ela sentia dores físicas e emocionais absurdas e nem se quer comentava de ir ao médico ou resolver aquilo, também parecia ter vergonha de praticar atividade física. Não pensava muito no amanhã, as vezes me parecia que ela era anestesiada. 


Gostava de cantarolar sem cobrar, achava que por amizade valia tudo. Bebia até o amanhecer sem problemas e gostava de ensaios e mais ensaios e ensaios... muitos desses para shows que nunca vieram a acontecer. Era sua diversão e eu respeitava, até aproveitava para ter um tempo só pra mim. Me cobrou uma vez do porquê eu não participar. Bem, eu não era música, era escritora. Geralmente, escritores gostam de espaços confortáveis para escrever. Também não bebia muito, nem fumava... o que afinal eu ia fazer? Para mim, não fazia muito sentido... mas eu queria estar e marcava presença era nos shows, aplaudindo, curtindo, vendo brilhar. 


Ela era muito sexy tocando seu baixo amarelo também. Eu me recordo de uma foto que fiz dela em cima de um palco, sorrindo para mim e o baixo pendurado no corpo com as mãos segurando um bolo de aniversário que planejei a semana inteira para vê-la surpresa. Eu queria ser inesquecível, marcá-la de alguma maneira. Queria que ela entendesse que cada corda tocada dos seus instrumentos eram também uma batida do meu coração. 


Não sei se ela me entendia muito bem. Achava ela fechada, misteriosa ou como disse acima anestesiada. A impressão que eu tinha é que ela estava acostumada com garotas que a presenteavam com suas presenças em ensaios. 


Isso também me lembra o meu esforço, após trabalhar numa campanha cansativa, para conseguir a tempo, dois ingressos para o show do Roger Waters fora da cidade, porque ela adorava e tocava Pink Floyd. Finalmente ela ia usar sua camiseta surrada da banda, sem que eu tirasse sarro por ela não querer vestir outra coisa no corpo. Hoje fico pensando, sem ela eu teria ido nesse show? Será que ela entendia o quanto me fazia bem, e o verdadeiro significado daquele show para mim?


Tento pensar que eu iria sim. Minhas amigas estavam lá, e eu não tinha medo da minha própria companhia, eu era muito feliz e segura sozinha...eu acho. Tento pensar que iria porque minha irmã e eu íamos a pé para a escola na adolescência, compartilhando um mp3 no ouvido escutando The Wall e debatendo todas as teorias que as músicas poderiam ter. Quanto a ela entender, acho que não cabe mais a mim. Muitas vezes o que imagino ser grandioso, para o outro talvez não significasse muita coisa. Lembranças não marcam por serem caras, por terem demandado muito esforço, por estar fora da cidade. Talvez ela trocaria tudo aquilo e até a minha presença para estar num mero ensaio fumando um. 


"Dividir meu tempo ou entregá-lo em suas mãos? 

Por que quando se vive o amor romântico só parece estar certo se formos um só?" 


A cigarra ainda estava no chão. Fazia um barulho, mas não chegava a ser uma canção. Meu prato já estava limpo, comi razoavelmente bem. Recordei que estar apaixonada é bom, mas é ruim ao mesmo tempo. E como era difícil para mim admitir sentimentos bons e ruins depois de tantos anos sozinha e completamente ciente de quem eu era, do que sentia e do que queria. Eu estava confusa, tentava entender onde havia me metido. Lembrei como me doía o gosto que ela tinha pela casa de outra pessoa. Sentia inveja, ciúmes e não admitia. Parecia ser cedo demais para confessar meu terrível defeito.  


“Um dia ela vai gostar da minha casa também, um dia talvez ela goste das minhas pessoas também...”


Eu pensava em segredo e com medo de nunca conseguir fazer com que ela gostasse do meu mundo como gostava do que ela já estava acostumada. Por muitas vezes achei que ela estivesse perdida, mas quem estava era eu. Me abri com a jovem ruiva da casa que ela gostava de frequentar, e ela me disse que ela era assim e só isso mesmo, com essas palavras. Senti uma maldade, achei que havia algum tipo de amizade. E finalizou dizendo que se eu continuasse ia acabar me estropiando, que ia ficar abusivo. Quanta pretensão dessa ruivinha fedelha! Quem decide se fica e o que vai ser sou eu. Me arrependi de ter comentado algo só porque ela fazia psicologia e me parecia sensata por não sentir absolutamente nenhum ciúmes da minha amada. A jovem ruiva era namorada da dona da casa, e a dona da casa era o antigo, e constantemente presente, amor da minha namorada. 


"Como ela conseguia não sentir ciúmes de uma pessoa extraordinária?" 


Não era cedo demais para confessar meu ciúmes. Hoje eu sei que nunca é cedo ou tarde demais para ser eu mesma. Espontânea, vulnerável, esforçada, errante, ciumenta, humana, intensa, chorosa... Não importa! Se o outro quiser ir embora ele vai. Quanto mais eu guardei sensações sozinha, mais me coloquei no caminho da desunião. Como teria sido se eu tivesse compartilhado com a pessoa amada? Nunca saberei. Quem sabe numa próxima... O que importa é que consegui ultrapassar essa fase...o que importa é que esse amor cresceu muito mais do que eu imaginava. É engraçado... mas eu não sinto falta da nossa história... entretanto, sinto falta do que eu via em você.


Levanto do chão, não tem mais comida no prato, preciso lavar o prato. E a cigarra no chão parou de tentar voar, de bater na parede e de cantar. Também não tive curiosidade de ver se estava morta... tanto faz agora.



Nenhum comentário: