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quarta-feira, 13 de maio de 2009

Para: "As plantas".


Eu deveria ter uns 7 anos, minha casa ainda era amarela, Júlia ainda trabalhava nela, e eu acordava cedo todas as manhãs para assistir um desenho de detetives e mistério que só dava para assistir se acordasse bem cedo.

Na frente da casa havia o portãozinho, o portãozão, e do lado três árvores das quais eu nunca descobri a espécie. Tinham folhas de formato xifoide, e espinhos. Espinhos por todo o caule.

Da direita para à esquerda, a primeira portava flores amarelas, a outra flores rosas e por último e a de caule mais grosso, e talvez por isso, me passasse a impressão de ser a mais experiente das três, brotava flores brancas.

Não me lembro como começou, só sei que eu conversava com elas, elas três, as árvores. As chamava de: "As plantas". As nomeei de "Brancas", "Amarelas", e "Rosas". Isso mesmo! No plural, porque minha professora dizia que uma planta apesar de ter uma folha bem distante da outra, possuir flores, no todo é uma só. Eu achava meio estranho, conversar com uma árvore que ao mesmo tempo era a folha e a flor e o espinho, e era essa minha explicação do nome ser no plural, fazia sentido, pensando melhor, eu fui genial!

Eu as ouvia, era uma voz cantada, várias vozes juntas, como se cada flor e folha estivesse falando junto e ao mesmo tempo, o vento me ajudava a entendê-las melhor, como se a voz fosse carregada. Era fininha, fininha...mas dava para ouvir...

Eu contava para elas coisas que eu andava aprendendo, sobre o pessoal da escola, família, alguns sonhos, rotina, às vezes aparecia furiosa e desabafava, outras risonha... ou simplesmente ficava lá sem falar nada, escutando-as e me divertindo.

Uma vez eu me enfureci com algo da escola, e contei para elas, "Rosas" reagiu como se estivesse me caçoando e eu acabei arrancando trilhões de folhas dela em uma mãozada. Ficamos um bom tempo sem nos falar...

Certo dia, mamãe disse que não gostava de escuridão, acrescentou que as plantas deixavam a frente da casa escura, que seria melhor cortá-las. Logo, dei a notícia para as plantas que se desesperaram juntamente a mim. Choramos juntas, pensei em amputá-las e plantar essa parte delas em outro lugar, mas não fiz. Não seria a mesma coisa.

Uma tardezinha, dessas que eu chegava feliz pela escola ter terminado, "Rosas" não estava mais lá, havia apenas um toco.

O toco... parecia recortado, ele estava todo cheio de pontas, marrom, calado. Perguntei as outras plantas quem tinha feito isso, e me mandaram para a calçada. Lá vi uma fogueira, "Rosas" toda despedaçada e embrulhada queimava sem nenhum sinal de dor. Júlia estava observando o fogo, perguntei então o que houve, ela disse que a casa estava escura, que um moço veio e cortou, e que precisava se livrar daquela plantaiada, acho que fiquei com vontade de chorar, não me despedi de "Rosas", e mesmo tentando, não a ouvia mais.

Nunca mais foi a mesma coisa, e acabou que com "Amarelas" e "Brancas" eu só falava de "Rosas".

Creio que fiquei meio desgostosa com as outras depois desse acontecimento, penso que depois de ter visto aquele toco todo recortado e calado eu preferi me afastar delas.

A frente da casa nunca mais foi a mesma, e com o tempo "Amarelas" e "Brancas" cresceram tão alto que se encontraram lá em cima, entrelaçaram-se, e no meio havia aquele buraco, o buraco que era antes o lugar de "Rosas", talvez, elas se uniram por se sentirem sozinhas, inclusive sem mim.

Passei tempos sem dar atenção a elas, evitei seus balanços que tanto gostava de ver, e com o tempo escureceu-se a casa de novo, e foram cortadas.

A casa ficou clara, bem clara e agora na frente, havia um portãozinho, um portãozão e três tocos. Três tocos calados.


(Em um diário de 1999, existem algumas páginas falando sobre as três.)

3 comentários:

Elisa disse...

..Oh Nanda..que culpa eu to sentindo por ter mandado cortar as coitadas..se eu soubesse que elas eram tão importantes pra vc, com certeza eu não as teria cortado..agora já foi!

Te amo!

blog do gallo disse...

éeegua??? muito bom?!!! mesmo... essa tua veia lispectoriana, ha de te servir para a tua vida e não só para a tua literatura... o valor das pequenas coisas, o sentimento profundo a hipervalorização do sem-valor: a essencia do ser humano, a vida em todos os lugares... até nos portões de aço...

blog do gallo disse...

"Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo".
(Jean-Paul Sartre, A Náusea)