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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Um estranho na vidraça

Terça-feria  amanhece, a casa está pronta e arrumada como sempre, entretanto, ao dar bom dia ao dia, percebe que a entrada da casa está com o jardim mais florido, a grama mais verde, e abelhas e borboletas passeiam pelas flores da entrada da casa, como se fossem as mais importantes da rua. 
Dessa vez, mesmo  que tudo esteja acontecendo como sempre, há um sentimento bonito e desconhecido na calçada. Arregala os olhos, se não confia espera que ele aperte a capainha. Pergunta quem é, e fica conversando com  a porta fechada de empecilho, até se sentir mais a vontade e abrir a porta um pouquinho. 
Um pouquinho porque não quer que o sentimento estranho veja a casa por dentro, e conversando mais de pertinho, ainda que meio se escondendo junto ao fundo da casa,  vai bem devagarzinho ganhando confiança, e vendo o que aquele sentimento pode contar e oferecer.
Mesmo assim, não confia por inteiro, então pede que volte outro dia, e o engraçado é que não espera por isso. 
Mas se amanhece e ele volta, percebe que tudo na casa já está em desordem. O fato dele ter aparecido já mudou a forma de como o dia amanhece, já mudou o jeito que acorda, já mudou as expectativas do que vai ver na calçada. Deixar acontecer um comparecimento por minutinhos, já faz pensar naquilo nos dias que amanhecerem normais. 
Então, se tudo já está em desordem, não tem jeito... de qualquer forma, alguma coisa já foi mudada, temos que aproveitar pra abrir a porta, e ver o que é que aquele sentimento bonito vai nos permitir sentir. E abrimos, mesmo que com um pouquinho de medo. 
Apresentamos a casa, os cômodos, oferecemos um chá, mostramos o que estamos lendo, perguntamos se prefere conversar lá fora ou lá dentro, se quer se sentar na cadeira ou deitar no tapete, o que acha das fotos, porque está sorrindo, e nos despedimos pensando em tudo aquilo com um sorriso curioso e confuso, deveria ter feito algo a mais? 
Com o tempo, o sentimento bonito vem nos visitar todos os dias. A companhia passa a ser agradável, e já nem tememos e nem pensamos pessimistas pelo amanhã.
O tempo passa, e bem perto da janela, depois que já estamos acostumados com o sentimento bonito, percebemos que alguém observa.
Fica um silêncio, fica a curiosidade. Mas, não sei porque motivo, não contamos ao sentimento bonito, e esperamos a hora dele ir no banheiro, para nos aproximarmos da janela e damos uma olhada mais de perto naquela coisa estranha. 
-Quem é você?
-Eu sou um pouco de você. Por que não me deixa entrar para nos conhecermos melhor?
Não deixamos porque logo de cara vemos como ele é feio, aparentemente perigoso, fedorento, infantil, manipulador e como suas falas soam cheias de artimanhas e  de gênio sabotador.
O estranho era um sentimento feio, e disse:
-Não me olhe desse jeito, como se eu não fizesse parte de você.
-Como? Você não faz parte de mim, eu nem te conheço!
-Por que você tem medo de mim? 
-Medo? 
-Sim, medo. Estamos conversando através dessa vidraça, e você me olha como se eu fosse um estranho.
-O que está fazendo ai? Me observa pra que? Quer entrar pra quê?
-Não precisa ter medo de mim, eu faço parte de você. Minha aparência é assim porque nem todo mundo sabe lidar comigo, estou assim porque você tentou lidar comigo.
-Não posso...
-Podemos nos conhecer se me deixar entrar como deixou esse outro aí. Não é porque sou feio que deve temer. Pensei que fosse uma pessoa que não julgasse pela aparência...
-Não julgo, mas não consigo confiar em você.
-Só porque sou feio?
-Não, é porque tenho medo de não saber lidar com dois sentimentos diferentes ao mesmo tempo.
O que não sabemos, é que uma vez que damos ouvidos a qualquer sentimento, seja ele feio ou bonito, a sintonia da casa já é outra, e olhar para a janela sempre será suspeito, quando o sentimento bonito for ao banheiro vamos sempre nos perguntar se o outro ainda está lá, espiando pela vidraça nua. E mudam as expectativas, muda a harmonia das visitas que eram agradáveis. 
Deixar acontecer um comparecimento por minutinhos, já faz pensar naquilo nos dias que amanhecerem normais. Então, se tudo já está em desordem, não tem jeito... de qualquer forma, alguma coisa já foi mudada, temos que aproveitar pra...comprar cortinas, talvez?. 
Mas não fazemos isso, porque aquilo não podia ser nosso.
E é assim que o ciúmes não invade nossa casa,  mas entra escondido pelo quintal e espia pela vidraça.
Não é convidado a compartilhar a companhia do sentimento bonito, não é encarado, não é esmiuçado, então fica ali... piorando tudo sem saber se está  cru ou vestido de ameaça.

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