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sábado, 31 de março de 2012

Na ponta dos pés




O ócio me era tão preocupante que de repente eu decidia que deveria criar uns sentidos pra viver. Certa vez acordei com tanta vontade de descobrir uma razão pra viver que criei num instante a ideia de que tudo que eu precisava era saber dançar. Tomando meu leite com chocolate, eu tentava imitar aquelas dançarinas que via pela TV e nas pontinhas dos pés eu colocava meu copo de leite na cabeça e passava de azulejo em azulejo sem pisar nas linhas. Depois sem o copo, em saltos eu pulava de sofá em sofá e na cozinha a regra era dar piruetas enormes até a secretária notar meu grande sucesso. 
E era isso, sim... eu era uma grande e ainda não descoberta bailarina. Certamente, quando desse o feriado, o circo chegaria na cidade, calculadamente eu ia dar uma pirueta de brincadeira no intervalo do circo, um palhaço iria me ver com um grande sorriso e se encantar com meu talento, fugiria com aquele povo maquiado de alegria a noitinha. 
Mamãe e Papai jamais saberiam meu paradeiro muito menos que eu estaria dando comida aos leões, mandaria cartas secretas para Nina e seria simplesmente aplaudida por crianças tão ociosas quanto eu era, crianças em busca de uma alegria que sempre parece chegar mas que nunca avisa quando e que quando vem, passa tão rápido, mais tão rápido que nos amordaça de saudade e nos deixa bêbadas, trôpegas e cheias de ressaca nessa busca de sentidos de viver. 

Quase conformada, eu percebi que aquela bailarina e eu, não podíamos ser a mesma pessoa. É que na bailarina havia sempre  uma paixão bonita mas que não me prendia, uma função que não me segurava por muito tempo e sua maior empolgação haveria de estar sempre em uma apresentação e haveria de ter uma rotina de tirar a maquiagem, pra não envelhecer tão rápido, de ensaiar até sair perfeito, de muita ordem e disciplina, glamour e aplausos, corpo e alma... mas espera! Tudo isso ainda não preenchia as migalhas que eu deixava pelo caminho, pra encontrar minha casa de doces. 

Na verdade eu nem gostava de ser magrinha e dispensava meus vestidos cor de rosa se estivesse disponível outra cor no guarda roupa. Espera ai, eu preferia brincar de lutinha com os meninos, que diabos de ideia era essa de ser bailarina?!
Ai abandonei o circo, me despedi dos leões e nunca mais dancei nos palcos mais lindos,  mais caros, mais imundos e nem visitei os camarins mal assombrados. Minha vida de bailarina chegou ao fim sem nem começar, porque o que me perseguia não estava na ponta daquelas sapatilhas, deveria de estar então em outro lugar.

Em uma pirueta no escritório de livros de papai derrubei um livro chamado: "O que é filosofia?", olhei para o livro, ele se mostrou pequeno de poucas páginas, lembro que  respondi o livro com outra pergunta: "Será que criança pode ler esse livro?", deixei o livro num lugar que eu não pudesse esquecer, continuei com as piruetas do meu fracasso de bailarina porque na verdade descobri que eu adorava rodar. Rodar, rodar... tão rápido até perder a noção da realidade! Foi incrível pra mim descobrir que quando se roda apenas seu próprio mundo fica perdido, o do outro continua intacto. De alguma forma eu me encontrava completamente excitada pelo fato de poder ser enganada por uma ilusão dos meus olhos e saber disso mas não poder controlar quando meu corpo ia caindo no chão. Toda vez que eu caia, caia sorrindo, se minha bailarina visse este tipo de comportamento diria que aquilo era uma tragédia. 
E era mesmo, porque de tanto rodar, eu já não caia como antes, consegui controlar a ilusão de um jeito que perdeu a graça, acabava em mim a alegria de rodar. 

Caída no chão sem sorrir, eu suspirei curiosa e me perguntei se todo mundo era assim feito eu, preocupada com a existência, preocupada com os sentidos, preocupada com o que era ou não verdade. Talvez, eu estivesse presa naquele corpo de criança, talvez minha irmã, Papai e Mamãe fossem uma grande ilusão dos meus olhos, mas no fundo também estivessem sozinhos e preocupados. Mas porque é que eles faziam seus papéis sem reclamar? Eu imaginava mamãe dançando, papai dançando, Nina dançando...fechava os olhos e sorria. Seus papéis realmente não combinavam com a vida de uma bailarina.

-Como era mesmo aquele nome que eu li? 

-Falou comigo? -perguntou a secretária.

-Falei comigo.

-As pessoas não falam com elas mesmas, só os loucos fazem isso...você tem muita minhoca na cabeça, não tem menina?

E imaginei que talvez  era louca, mas antes que chorasse por ser louca, imaginei as minhocas na minha cabeça e sorri daquilo.

-Você também ri sozinha? Você é louca mesmo, eu queria ter essa capacidade, queria entrar nessa sua cabecinha.

Era Filosofia o nome que eu esqueci. Corri para o escritório e abri chocando-me cada vez mais em cada página que passava. Descobri que iguais a mim havia milhões, que temos muitas perguntas que não poderão ser respondidas mas que temos o poder de criar hipóteses e de viver com, sem e para elas. 

Aprendi a palavra crise e que ela podia persistir por muito tempo, que podia ser cessada por alguma razão ou que poderia simplesmente viver comigo até a morte mas controlada e adaptada ao meu modo de viver a  vida.

Eu não era bailarina, não era peão de roda, eu era aquela palavra que li e nunca mais esqueci: Inconformada. E aquilo não era tão ruim do ponto de vista do livro, aquilo era essencial, transformador e racional, isto é, se eu não me cansasse de continuar a buscar.

Talvez a secretária estava errada e certa sobre mim...eu não era louca, o que eu tinha era minhoca na cabeça, aquele livro não era livro pra criança ler.  Agora eu sabia um monte de coisas mas me sentia extremamente culpada por sabê-las, agora eu sabia que buscar era normal, anormal era sentir medo.

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