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sexta-feira, 5 de junho de 2009

Olhos regados.

Começava o dia sem abrir os olhos desde criança. Carmem aprendeu a acordar e não abrir os olhos. Toda manhã era assim, desde que criou o hábito, e até depois de casada, continuava com a mania. Aurélio, seu marido, no começo achou estranho, mas como os olhos da esposa, se acostumou. Ela cheirava as cobertas, e com muita força de vontade segurava seus próprios cílios. O que ela mais achava engraçado, era que mesmo com tanto tempo acordando da mesma maneira, a curiosidade dos cílios de se abrirem primeiro e só depois se levantar, era a mesma de sempre. Depois de levantada, e de olhos abertos, Carmem preparava o café. Na casa eram apenas ela e Aurélio. Tomavam café juntos todos os dias no mesmo horário. Ela trazia o jornal para ele, que lhe dava um beijo de bom dia. Aurélio tinha a mania de estender o jornal e depois de alguns minutos de barulho de colher mexendo chão de xícara, praticamente gritava sobre algo que achava um absurdo ou espetacular noticiado no jornal. Algumas vezes Carmem estava com o café na goela quando isso acontecia, e tossia de susto, ele comentava que ela vivia assustada e sorria, e as narinas de Carmem exalavam diferente...ódio. Ela odiava essa mania do marido. Se despediam com outro beijo que representava que não se veriam mais, não até o almoço, e Carmem botava luvas azuis e ia para o jardim. Se punha então a regar todas as flores e ervas daninhas, retirava folhas semi-mortas, e procurava ninhos de passarinho, retirava mamões maduros e colhia tulipas vermelhas para por na pia da cozinha, isso a fazia se distrair quando lavava a louça.
Certo dia, quando já estava de luvas e colhendo tulipas, pois-se a cheirar as tulipas antes de chegar a cozinha e sentiu o cheiro da terra molhada como nunca antes. Levantou as sobrancelhas e salivou de repente. Imaginou-se então, coberta de terra. Sem olhar para os lados Carmem encheu as mãos de terra molhada e engoliu. A terra, marrom avermelhada grudou no céu de sua boca e pintou seus dentes, e as salivas chegavam cheias de pretensão, como se estivessem seduzindo, para que a terra fosse deslizando logo pelo o organismo inteiro. Carmem adorou o gosto da terra molhada e engoliu mais uma vez. Foi para a cozinha cantando e esperou pelo beijo de chegada de Aurélio. Ele chegava, perguntava o que ela achava sobre algumas pessoas do seu trabalho, as quais ela pouco conhecia, e sem esperar o achismo dela, os dois, enchiam suas bocas de comida e bebida.
Anoiteceu e Carmem não conseguia dormir, sentia o cheiro de terra molhada nos lençóis e salivava. Pois a mão perto dos olhos do marido e mexeu para conferir se estava acordado, não estando foi para o jardim. Molhou a terra e comeu. Sorriu para a lua cheia, acariciou as tulipas, e comeu de novo.
Aurélio nunca descobriu o que a esposa andava fazendo. A terra marrom avermelhada nunca descobriu que trazia felicidades não só para tulipas.
E Carmem acordou feliz aquela manhã, sem abrir os olhos é claro.
Teve um sonho sublime, terra no jantar.

Um comentário:

Marina de Alcântara Alencar, a Nina. disse...

aaaaaaaaaaaaaah! Esse foi um dos textos mais incríveis que já li.
Lembrei-me de uma passagem de Cem anos de Solidão, onde a Rebeca comia terra e reboco de paredes!
Adooorei! Sublime!