O casamento e o pacto
Ter coragem para te cumprimentar no seu casamento
foi uma das coisas mais difíceis que eu tive que fazer esse ano até agora.
Mamãe disse que não seria de bom tom ter ido a sua festa e não tentar te dar os
parabéns olho no olho. Não somos mais próximas, apesar de termos disparado juntas
no Ventania, o cavalo mais veloz da
fazenda do Pará do nosso avô. Não sabemos mais uma da vida da outra, apesar de termos
ido juntas e sozinhas pra Goiânia prestar o vestibular da UFG, sermos fãs do Harry
Potter, termos frequentado as mesmas pizzarias e mergulhado na mesma piscina
durante toda a infância e adolescência. Não somos mais primas, depois do meme
que eu acabei te expondo na internet, numa atitude super constrangedora, no
calor das emoções de uma eleição presidencial que separou muitas pessoas.
Achei sua festa belíssima. Também nunca tinha te
visto tão feliz. Exceto quando passou no vestibular de medicina. Você parecia
aquelas noivas de filme. Não sei se será feliz no amor, nem se o seu agora marido
será um cara legal para você, mas tenho certeza pelo brilho dos seus olhos que
você quis e lutou por isso, como tudo na sua vida.
Você me olhou três vezes diretamente nos olhos. Me
aproximei da pista de dança com minha namorada para ter uma chance de falar com
você, mas o medo de todas as suas amigas radiantes ao seu redor me atormentava.
“E se eu estragar a felicidade dela?”, “É mesmo necessário cumprimenta-lá?
Talvez a última coisa que ela queira é se lembrar da nossa briga...”, “Eu nem
deveria ter vindo”, eu pensava tanto que nem vi que de repente suas amigas te
puxaram correndo pra tomar uma bebida especial, com seus vestidos rosados e esvoaçantes
e acabamos uma de frente pra outra sem querer.
Sua melhor amiga da escola me reconheceu e me disse
gentilmente um oi, abrindo pra que eu falasse com você. “Ela sabe de alguma
coisa?”, me perguntei. Você estava radiante e disse “Oi!”, com um olhar
sincero. Eu meio gaguejando te desejei parabéns e dei um abraço meio forçado e
estranho. Você agradeceu e saiu como um tiro branco de luz ao redor de um
exército de garotas fortes e bem-sucedidas para o bar da própria festa. Me
senti aliviada, constrangida e mais uma vez envergonhada.
Já tem uns sete anos que vez ou outra você aparece
nos meus sonhos me deixando um pouco envergonhada. A minha culpa te refaz de
ano em ano nos meus sonhos, vez ou outra, para me lembrar que alguns laços são
para sempre e não podem ser rompidos mesmo que as palavras e o tempo mostrem
que sim.
De alguma maneira masoquista, eu me martirizo, sem
querer, com a lição de me lembrar em como ser adulta, traz uma responsabilidade
muito maior com as palavras e com o que podemos causar nas pessoas que amamos e
crescemos juntas. Talvez eu só tenha entendido o que significa família de
verdade, a partir dali.
Quanto mais o tempo passa, mais eu observo as
respostas que a vida me dá de várias experiências que tivemos na infância e
adolescência. Me sinto injusta com você, e não que você precise sentir pena de mim,
mas pensei por muitos anos no porquê eu fiz isso e por qual motivação. Afinal
de contas até aquele episódio, nunca pensei que fossemos parecidas em alguma
coisa... chego a algumas conclusões algumas vezes, mas nada que justifique o
que eu fiz. E concluo sempre que talvez a distância tenha me feito esquecer o
bom senso.
Você sempre conseguiu tudo que queria. Tem uma qualidade
impar e para poucos. Também sempre teve um time de amigas estudiosas e que
também conseguiram tudo que queriam. Sempre foi corajosa na medida certa, lutava
para que as coisas ao seu redor melhorassem. Suas notas, seu quarto, seu
diário, seus desenhos, seus namorados... Você namorava quando bem entendia e com
quem gostava.
Apesar de termos a mesma idade, você parecia ser
melhor do que eu pra entender o que era certo e errado, e se minha cabeça
naquela época funcionasse como hoje, eu diria que você também tinha sede de
justiça, apesar de nunca estarmos do mesmo lado na política.
Eu me lembro que uma vez você me chamou na sua
casa, como se fosse uma reunião de primogênitas para falar do comportamento da
nossa prima mais adorada. Lembro de você com muita inteligência emocional na
sua fala. Você tinha sede de justiça. E falava como algumas vezes, a prima
referida passava dos limites, nos manipulava em brincadeiras, nos ameaçava para
que fizéssemos coisas ou caso contrário não gostaria mais de nós ou contaria
algo sobre nós a quem não podia, nos tratava mal e ficava sempre por aquilo
mesmo.
Ela realmente fazia tudo isso e todas nós ficávamos
de mãos atadas. Éramos todas tão crianças..., mas eu não sabia que algo podia
ser feito. Foi aí que entendi que alguma coisa estava errada e nos machucando
de fato. Então você disse que ela precisava de uma punição. Que faríamos um
pacto. “Um pacto?! ”, perguntei. E você disse que o pacto era que nenhuma de
nós, nem eu nem a minha irmã, nem você e nem suas irmãs iriamos mais dirigir a
palavra a ela.
Seríamos surdas quando ela falasse. Mudas quando
ela nos perguntasse algo. E nos afastaríamos de maneira natural e proposital
quando ela se aproximasse. Fiquei me perguntando se eu conseguiria e você disse
que é claro que conseguiria. E que uma ia ajudar a outra. Que eu também deveria
ajudar minha irmã e vice-versa.
Me lembro que antes disso, mudar de escola foi bem difícil pra
mim. A prima adorada e vítima do pacto e sua irmã, sempre exaltavam o grande colégio como
um dos melhores da cidade. Falavam que todas deveríamos estudar por lá, que
seríamos unidas, que seríamos uma turma... mas nada disso aconteceu quando eu e
minha irmã entramos naquele colégio. Não demorou muito pra que eu percebesse que lá dentro do
colégio as regras mudavam e mal podíamos nos cumprimentar direito. Eu não tinha
muitas amizades. Me sentia um peixe fora d'água. E de repente um sentimento de inferioridade tomou conta de
mim por muitos anos. Eu era triste e medrosa. E aquela escola era grande demais, lotada demais e vazia demais dentro do meu
peito.
Você sempre era da sala A, e eu sempre seguia a
letra da sala da tal prima adorada e mandona, mesmo sabendo que internamente eu não
pertencia aquele mundo. Ela de alguma forma me acolhia. Mesmo que fossemos muito diferentes. Talvez, o pacto servira pra que eu acordasse para o meu
próprio caminho. Pelo menos a partir disso, eu percebi que poderia criar minha
própria história e ir procurar a minha própria sala, letra e mundo.
Nós conseguimos cumprir o pacto e o respeito que precisávamos. Foi uma sexta série bem diferente quando eu decidi que seguiria longe da sombra dela. Quando nossa prima continuou sendo amada e entendeu o recado. E quando os adultos da família entenderam que a coisa era séria entre todas nós e até nossos avós ficaram chocados com a nossa determinação, com o nosso pacto perfeito. Em poucos dias o comportamento mandão dela mudou e fomos orientadas pelos adultos a perdoar e seguir em frente. “Vocês são primas, primas se amam”, nos diziam. “Menos na escola”, eu me dizia mentalmente.
Nós conseguimos cumprir o pacto e o respeito que precisávamos. Foi uma sexta série bem diferente quando eu decidi que seguiria longe da sombra dela. Quando nossa prima continuou sendo amada e entendeu o recado. E quando os adultos da família entenderam que a coisa era séria entre todas nós e até nossos avós ficaram chocados com a nossa determinação, com o nosso pacto perfeito. Em poucos dias o comportamento mandão dela mudou e fomos orientadas pelos adultos a perdoar e seguir em frente. “Vocês são primas, primas se amam”, nos diziam. “Menos na escola”, eu me dizia mentalmente.
Tenho boas lembranças suas. Você também lutava para
que seus diários fossem respeitados, mesmo quando a prima mais velha de todas o
roubava e lia correndo por toda a casa. Eu morria de medo que o meu fosse lido.
Escondia a sete chaves e me perguntava como você tinha coragem de enfrentar a
mais velha de todas e não se destruía toda com algum dos seus segredos
expostos. Você não era de vidro como eu.
Você também dizia que deveríamos acordar cedo para
conseguir os melhores cavalos na fazenda de arapoema e que os cavalos não eram
da prima mandona, muito menos da prima mais velha. Também dizia que poderíamos
encontrar bons caminhos pra cavalgar independente delas. Que não éramos lesadas
e nem obrigadas a ir pelo mesmo caminho de sempre, nem pelo caminho que elas
gostavam. Você era determinada, independente da sua sensibilidade e seus
trejeitos de menina mais fresquinha. Sempre acreditava em si mesma.
Lembro de você também na feira de ciências da
escola me explicando o que era uma célula virando com as mãos um vidro cheio de
gel com partículas de objetos dentro. Mal sabíamos que você seria médica no
futuro. E você sempre perguntava “Você entendeu mesmo o que eu expliquei?”, e
eu balançava a cabeça que sim.
No dia seguinte da sua festa, mamãe e eu fomos
almoçar no clube e por coincidência você estava lá com uma parte do pessoal da
sua festa também para almoçar. Paramos pra cumprimentar todos, comentamos e
sorrimos dos bêbados da festa, tive a chance de comentar contigo algo que comi
e achei gostoso, algo que achei bonito e de perguntar quem havia pegado o buquê. Você me
respondeu com sorrisos sinceros, sua felicidade continuava radiante. “Como ela amadureceu”, eu pensava procurando alguma pista de mentira e só encontrava sentimentos sinceros. “Parece que ela me perdoou mesmo. Será que eu mesma
me perdoei?”, eu me perguntei ao conseguir te dar mais um abraço e desejar parabéns
novamente pelo casório, e dessa vez não ser um abraço forçado, nem tão rápido, e sentindo suas mãos abraçarem minhas costas agradecendo.
Entrei no carro um pouco confusa, talvez essa até seja a última vez que nos encontremos no mesmo lugar com algum assunto em comum. Talvez, ser adulta seja saber a hora exata de fazer um grande pacto
consigo mesma.
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