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quarta-feira, 29 de maio de 2019

O casamento e o pacto





Ter coragem para te cumprimentar no seu casamento foi uma das coisas mais difíceis que eu tive que fazer esse ano até agora. Mamãe disse que não seria de bom tom ter ido a sua festa e não tentar te dar os parabéns olho no olho. Não somos mais próximas, apesar de termos disparado juntas no Ventania, o cavalo mais veloz da fazenda do Pará do nosso avô. Não sabemos mais uma da vida da outra, apesar de termos ido juntas e sozinhas pra Goiânia prestar o vestibular da UFG, sermos fãs do Harry Potter, termos frequentado as mesmas pizzarias e mergulhado na mesma piscina durante toda a infância e adolescência. Não somos mais primas, depois do meme que eu acabei te expondo na internet, numa atitude super constrangedora, no calor das emoções de uma eleição presidencial que separou muitas pessoas.

Achei sua festa belíssima. Também nunca tinha te visto tão feliz. Exceto quando passou no vestibular de medicina. Você parecia aquelas noivas de filme. Não sei se será feliz no amor, nem se o seu agora marido será um cara legal para você, mas tenho certeza pelo brilho dos seus olhos que você quis e lutou por isso, como tudo na sua vida.

Você me olhou três vezes diretamente nos olhos. Me aproximei da pista de dança com minha namorada para ter uma chance de falar com você, mas o medo de todas as suas amigas radiantes ao seu redor me atormentava. “E se eu estragar a felicidade dela?”, “É mesmo necessário cumprimenta-lá? Talvez a última coisa que ela queira é se lembrar da nossa briga...”, “Eu nem deveria ter vindo”, eu pensava tanto que nem vi que de repente suas amigas te puxaram correndo pra tomar uma bebida especial, com seus vestidos rosados e esvoaçantes e acabamos uma de frente pra outra sem querer.

Sua melhor amiga da escola me reconheceu e me disse gentilmente um oi, abrindo pra que eu falasse com você. “Ela sabe de alguma coisa?”, me perguntei. Você estava radiante e disse “Oi!”, com um olhar sincero. Eu meio gaguejando te desejei parabéns e dei um abraço meio forçado e estranho. Você agradeceu e saiu como um tiro branco de luz ao redor de um exército de garotas fortes e bem-sucedidas para o bar da própria festa. Me senti aliviada, constrangida e mais uma vez envergonhada.  
   
Já tem uns sete anos que vez ou outra você aparece nos meus sonhos me deixando um pouco envergonhada. A minha culpa te refaz de ano em ano nos meus sonhos, vez ou outra, para me lembrar que alguns laços são para sempre e não podem ser rompidos mesmo que as palavras e o tempo mostrem que sim.

De alguma maneira masoquista, eu me martirizo, sem querer, com a lição de me lembrar em como ser adulta, traz uma responsabilidade muito maior com as palavras e com o que podemos causar nas pessoas que amamos e crescemos juntas. Talvez eu só tenha entendido o que significa família de verdade, a partir dali.

Quanto mais o tempo passa, mais eu observo as respostas que a vida me dá de várias experiências que tivemos na infância e adolescência. Me sinto injusta com você, e não que você precise sentir pena de mim, mas pensei por muitos anos no porquê eu fiz isso e por qual motivação. Afinal de contas até aquele episódio, nunca pensei que fossemos parecidas em alguma coisa... chego a algumas conclusões algumas vezes, mas nada que justifique o que eu fiz. E concluo sempre que talvez a distância tenha me feito esquecer o bom senso.

Você sempre conseguiu tudo que queria. Tem uma qualidade impar e para poucos. Também sempre teve um time de amigas estudiosas e que também conseguiram tudo que queriam. Sempre foi corajosa na medida certa, lutava para que as coisas ao seu redor melhorassem. Suas notas, seu quarto, seu diário, seus desenhos, seus namorados... Você namorava quando bem entendia e com quem gostava.

Apesar de termos a mesma idade, você parecia ser melhor do que eu pra entender o que era certo e errado, e se minha cabeça naquela época funcionasse como hoje, eu diria que você também tinha sede de justiça, apesar de nunca estarmos do mesmo lado na política.

Eu me lembro que uma vez você me chamou na sua casa, como se fosse uma reunião de primogênitas para falar do comportamento da nossa prima mais adorada. Lembro de você com muita inteligência emocional na sua fala. Você tinha sede de justiça. E falava como algumas vezes, a prima referida passava dos limites, nos manipulava em brincadeiras, nos ameaçava para que fizéssemos coisas ou caso contrário não gostaria mais de nós ou contaria algo sobre nós a quem não podia, nos tratava mal e ficava sempre por aquilo mesmo.

Ela realmente fazia tudo isso e todas nós ficávamos de mãos atadas. Éramos todas tão crianças..., mas eu não sabia que algo podia ser feito. Foi aí que entendi que alguma coisa estava errada e nos machucando de fato. Então você disse que ela precisava de uma punição. Que faríamos um pacto. “Um pacto?! ”, perguntei. E você disse que o pacto era que nenhuma de nós, nem eu nem a minha irmã, nem você e nem suas irmãs iriamos mais dirigir a palavra a ela.

Seríamos surdas quando ela falasse. Mudas quando ela nos perguntasse algo. E nos afastaríamos de maneira natural e proposital quando ela se aproximasse. Fiquei me perguntando se eu conseguiria e você disse que é claro que conseguiria. E que uma ia ajudar a outra. Que eu também deveria ajudar minha irmã e vice-versa.

Me lembro que antes disso, mudar de escola foi bem difícil pra mim. A prima adorada e vítima do pacto e sua irmã, sempre exaltavam o grande colégio como um dos melhores da cidade. Falavam que todas deveríamos estudar por lá, que seríamos unidas, que seríamos uma turma... mas nada disso aconteceu quando eu e minha irmã entramos naquele colégio. Não demorou muito pra que eu percebesse que lá dentro do colégio as regras mudavam e mal podíamos nos cumprimentar direito. Eu não tinha muitas amizades. Me sentia um peixe fora d'água. E de repente um sentimento de inferioridade tomou conta de mim por muitos anos. Eu era triste e medrosa. E aquela escola era grande demais, lotada demais e vazia demais dentro do meu peito.

Você sempre era da sala A, e eu sempre seguia a letra da sala da tal prima adorada e mandona, mesmo sabendo que internamente eu não pertencia aquele mundo. Ela de alguma forma me acolhia. Mesmo que fossemos muito diferentes. Talvez, o pacto servira pra que eu acordasse para o meu próprio caminho. Pelo menos a partir disso, eu percebi que poderia criar minha própria história e ir procurar a minha própria sala, letra e mundo. 

Nós conseguimos cumprir o pacto e o respeito que precisávamos. Foi uma sexta série bem diferente quando eu decidi que seguiria longe da sombra dela. Quando nossa prima continuou sendo amada e entendeu o recado. E quando os adultos da família entenderam que a coisa era séria entre todas nós e até nossos avós ficaram chocados com a nossa determinação, com o nosso pacto perfeito. Em poucos dias o comportamento mandão dela mudou e fomos orientadas pelos adultos a perdoar e seguir em frente. “Vocês são primas, primas se amam”, nos diziam. “Menos na escola”, eu me dizia mentalmente.

Tenho boas lembranças suas. Você também lutava para que seus diários fossem respeitados, mesmo quando a prima mais velha de todas o roubava e lia correndo por toda a casa. Eu morria de medo que o meu fosse lido. Escondia a sete chaves e me perguntava como você tinha coragem de enfrentar a mais velha de todas e não se destruía toda com algum dos seus segredos expostos. Você não era de vidro como eu.

Você também dizia que deveríamos acordar cedo para conseguir os melhores cavalos na fazenda de arapoema e que os cavalos não eram da prima mandona, muito menos da prima mais velha. Também dizia que poderíamos encontrar bons caminhos pra cavalgar independente delas. Que não éramos lesadas e nem obrigadas a ir pelo mesmo caminho de sempre, nem pelo caminho que elas gostavam. Você era determinada, independente da sua sensibilidade e seus trejeitos de menina mais fresquinha. Sempre acreditava em si mesma.

Lembro de você também na feira de ciências da escola me explicando o que era uma célula virando com as mãos um vidro cheio de gel com partículas de objetos dentro. Mal sabíamos que você seria médica no futuro. E você sempre perguntava “Você entendeu mesmo o que eu expliquei?”, e eu balançava a cabeça que sim.

No dia seguinte da sua festa, mamãe e eu fomos almoçar no clube e por coincidência você estava lá com uma parte do pessoal da sua festa também para almoçar. Paramos pra cumprimentar todos, comentamos e sorrimos dos bêbados da festa, tive a chance de comentar contigo algo que comi e achei gostoso, algo que achei bonito e de perguntar quem havia pegado o buquê. Você me respondeu com sorrisos sinceros, sua felicidade continuava radiante. “Como ela amadureceu”, eu pensava procurando alguma pista de mentira e só encontrava sentimentos sinceros. “Parece que ela me perdoou mesmo. Será que eu mesma me perdoei?”, eu me perguntei ao conseguir te dar mais um abraço e desejar parabéns novamente pelo casório, e dessa vez não ser um abraço forçado, nem tão rápido, e sentindo suas mãos abraçarem minhas costas agradecendo. 

Entrei no carro um pouco confusa, talvez essa até seja a última vez que nos encontremos no mesmo lugar com algum assunto em comum. Talvez, ser adulta seja saber a hora exata de fazer um grande pacto consigo mesma.   






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