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terça-feira, 6 de outubro de 2009

Eu pensava que chuva era mais que água.

Uma das decepções da minha existência é a preparação temporal, o índice, que a chuva antes de cair, quase todas as vezes, faz.
Quando menina, janelas e portas batiam uma atrás da outra. "BÁ!-BÁ!",
Júlia, uma funcionária que por muito tempo trabalhou na nossa casa (e já citei algumas vezes em outros posts) gritava lá da varanda como um general: "É chuva!"
"É chuva?", perguntava-me sentada no sofá protegendo com as mãos as pernas dobradas, "Me ajuda a catar a roupa do varal meninas! Corre!",
e Nina e eu corríamos serelepes pulando e sentindo uma sensação tão perigosa e gostosa que mau respirávamos.
Para mim, era como se a chuva fosse trazer muito mais que simplesmente, água... Quem sabe um rei, um aviso, uma guerra, monstros ferozes e devoradores montados a cavalo, alguma coisa surreal, mística ou profética. É claro, a chuva nunca trouxe mais que água, e não é claro que até hoje ainda sinto profundos anseios de que ela trará. Fui enganada, é que a preparação das árvores, do vento, a mudanças da cor do céu, o ritual da roupa não poder estar lá e de fechar e tirar e tampar e calçar, com contagem quase que regressiva antes dos primeiros pingos chegarem me passou a ideia de que era um fenômeno mais pitoresco do que natural.
"Fecharam as janelas do quarto?" perguntava Júlia, com as roupas nos ombros e na cabeça, e eu imaginando que fossem os corpos feridos. "Sim!", respondíamos. Quando esquecíamos uma janela aberta, abríamos a porta dos quartos desesperadas e lá estava: A cama, molhada. "Ela está chorando?", pensava fechando a janela rápido. Quando essa falha acontecia, Júlia tirava a roupa da cama e dizia: "Quando o sol voltar, levem o colchão para fora."
Na minha cabeça éramos pessoas importantes, lutando contra alguma coisa.
A chuva era barulhenta, eu ouvia os telhados lutando firmemente contra ela. Via ela sendo derrotada quando ela descia pelas telhas, contava então, as cachoeiras de soldados dela, que se postavam em volta de toda a minha casa, como se tivessem nos cercando.
Quando a chuva vinha mais violenta, com trovão e raios, minha irmã me dizia:
"Não pise no chão sem chinelo. Não fale alto, nem deixe os ouvidos destampados."
"Por que?"
"Shiii! Quer ficar muda? Se você falar e trovoar na hora, fica muda, se não tampar os ouvidos fica surda, se não calçar os chinelos, um raio te pega."
"E o que eu faço?"
"Nada."
E ficávamos no sofá que na época tinha uma estampa divertida e almofadas quase do meu tamanho com figuras de animais selvagens.
Incomodada com a minha obediência e o silêncio e barulho só da chuva, Nina ia para o canto esquerdo do sofá, colocava a almofada na frente dela e dizia descontraída: "Nanda, faz de conta que aqui onde eu tô é minha casa."
(...)
Então eu entendia que "nada", apesar de ser nada, não nos impedia de começar a brincar com a realidade.

2 comentários:

Marina de Alcântara Alencar, a Nina. disse...

que liiindo! eu quase choreeei, me veio tudo à mente como se fosse ontem... "ficar muda..." kkk
;D

Fernanda de Alcantara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.