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segunda-feira, 2 de outubro de 2023

A quimera e a chegada da primavera.

K halyl parou em uma estação da minha vida que eu não estava tão feliz, nem em movimento, nem esperançosa. Eu estava um pouco cansada e congelada num inverno misterioso. Sutilmente, Khalyl desceu com sua bagagem e seu cigarro eletrônico, marcando sua presença, deixando suas mensagens e demonstrando sua preocupação. Mas... Quem seria amigo de uma pessoa que não sentia mais prazer em sair, bater papo e socializar? Tive receio... Como Khalyl iria ficar? Ele não pareceu se importar muito com meu rosto desgostoso. E me contou que na vida era preciso ter paciência e que ele tinha uma "alma velha", que entendia perfeitamente minha falta de pré requisitos para amizade.

Elegantemente, Khalyl também disse que eu entenderia tudo depois e sabia me dar espaço. m dia, Khalyl veio até minha casa a tarde só para comer um pedaço de doce de goiaba. Eu não tinha nada para contar para ele, nada para fazer. Ele, me mostrava memes no celular e vídeos bobos. Eu me perdia um pouco com a agitação dele, mas fiquei aliviada de não precisar ter que fazer grandes coisas para fazê-lo se sentir a vontade. Perdi o hábito de receber pessoas. Outro dia, Khalyl também não se importou de me ver na casa da minha avó, a noite, no meio da semana. Chegou junto, cozinhou e de sobra ainda deu corda para uns tios meus que apareceram por lá de surpresa contando lorota.

Confesso que tive receio de que Khalyl pudesse se sentir desconfortável com a presença de pessoas desconhecidas, mas eu estava completamente errada, porque Khalyl é sereno, sábio e debochado. E ele sorria e me olhava com a expressão de que estava tudo bem, eu não ser sociável e estar fazendo sala como deveria. Sem perceber, Khalyl rompeu em mim com a obrigação de que eu deveria estar sempre sorrindo e agradável para ser uma boa companhia, para que eu fosse suportável. E um apego seguro foi sendo construído e uma crença doente se desmanchava. Uma espécie de amizade "comadre" surgia. E nossos encontros eram confortáveis e ele gostava de me contar o que comprou na feira porque era mais gostoso do que no supermercado, e também de passeio na natureza e simplicidade.

inverno ia ficando mais tranquilo e Khalyl percebeu que eu estava mais a vontade, sugeriu que comêssemos em sua casa. Aquele convite me deixou em conflito. Sair da minha estação era um pouco assustador. De repente, soube por intuição repentina que Khalyl de alguma forma sempre soube da quimera que eu devia enfrentar em certa travessia. Aceitei o convite e fiquei sentada em sua área, enquanto ele cozinhava com seus temperos secretos e deliciosos. Eu sentia fome e medo por estar fora de casa, enquanto ele cantava alto, aumentava o som da música, era sarcástico e me contava de um acidente de moto que sofreu e só não foi pior porque uma árvore o aparou e salvou. Ele contou isso umas 1000 vezes. As vezes ainda me conta.

Khalyl me lembra um pouco minha mãe quando começa a falar das suas raivas e desapontamentos do mundo, isto é, reclama muito, pragueja e depois esquece… -Tá pronto amiga... veja se você gosta do meu tempero. Foi mastigando sua comida, na sua casa, bem devagar que eu subitamente percebi que a intensidade da existência do Khalyl na minha estação, estava me alimentando e nutrindo para algo além, para algo maior do que a amizade que construíamos há dias. Me toquei então que eu estava sendo fortalecida e encorajada para enfrentar uma batalha. Me situei de que Khalyl e sua chegada, lealdade e cuidado iam muito além de uma simples “amizade de comadre”… Isto é, nós estávamos convocados para uma guerra juntos.

Dai em diante, Khalyl aparecia na porta da minha casa, no seu cavalo preto e eu apenas confiava e saia com minha espada e armadura, para entender e enfrentar o que era preciso encarar de uma vez: o fim do meu inverno misterioso, a saída da minha estação e combater e enfrentar finalmente a minha maldita quimera. Quando chegamos no campo de batalha tive muito medo. As vezes ainda tenho. Mas aprendi que medo a gente enfrenta e com um amigo do lado fica um pouco mais fácil. A coragem de Khalyl me contagiou, me preparou, me situou sobre a minha. E a quimera que era gigante, misteriosa e as vezes mais do que uma, agora dispara meu coração, mas não me para, não me congela.

As vezes, percebo que Khalyl se desfaz da sua importância, mas foi sua estratégia de guerra, seus conselhos e observações precisas, e a forma devagar e bonita que ele chegou e ficou, junto a todas as nossas risadas, comidas divididas e saídas tranquilas que fazem toda a diferença em toda a batalha. Não importa o que aconteça, quem tem um amigo com arcos e flechas prontos para o amparar, caso a própria espada não seja suficiente para lutar sozinha, tem tudo. E finalmente eu fui para o combate e descongelei. Aprendi a lutar de cabeça erguida contra a quimera e tudo mais. Algumas vezes corto suas cabeças, subo em cima delas, ataco, golpeio e rebato. Outras vezes sou atingida, sangro, choro, recuo. Khalyl também é atingido, também golpeia. E nenhuma batalha é igual. Algumas fui sozinha, outras acompanhadas de novos amigos que fiz na jornada, e ainda teve aquelas que Khalyl e eu lutamos separados. E as flores da chegada da primavera finalmente brotaram.

Sei que a primavera não dura para sempre. Sei que amigos também se movimentam, estacionam e conhecem novas paradas, vivem outras estações. As vezes percebo Khalyl com dificuldades ou se desfazendo de aceitar a sua importância na jornada... Talvez tenha a ver com alguma quimera que ele também precisa enfrentar, talvez tem a ver com algum inverno misterioso que ele também tenta não congelar. Mas, tudo que agora sei é que eu não posso me paralisar ou deixar de dizer o quanto Khalyl é mais do que um personagem importante para essa história que apenas começa. Sinto informar, mas Khalyl terá minha ajuda também, e terá que me aturar nos próximos invernos. Assim como as quimeras serão derrotadas e vencidas quantas vezes for necessário. Viva o poder e a aventura de uma boa e simples amizade. Quero me lembrar por muito tempo do amigo que me trouxe o mapa do riso outra vez, a defesa da alegria, a organização da raiva… 

Com amor, Fernanda. Feliz Aniversário.

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