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segunda-feira, 28 de maio de 2012

A suicida

Tinha o diabo no corpo quando menos esperava, despertada numa raiva sobrenatural, o seu lado mais malvado e sedutor foi ficando cada dia mais repugnante e auto-destrutivo. Aquilo gerava um pânico sobrenatural antes de dormir e ao acordar de uma maneira que só ela podia aguentar e experimentar. Foi perdendo o equilíbrio entre  a realidade e a fantasia, percorrendo um caminho de insanidade, no qual não sabia mais por onde ia dar. Não pensava mais antes de agir, não se controlava. Isso fez com que perdesse as artimanhas de uma outra guerra, então perdera também a chance de dividir aquele fardo, não dava mais pra compartilhar, não dava mais pra dividir o temor em pedacinhos e um dos cavalheiros que mais aparentava coragem e quase tomou conta de seu reino, partiu de última hora levando na garupa, com algumas das melhores lutas, a enferrujada armadura que já não lhe cabia pra se proteger. 
Os sentidos vinham dessa vez de queimar o corpo, ao acordar, ao pensar, na hora de se alimentar e enquanto respirasse. Todos de uma só vez, vinham para buscá-la, era hora de enfrentar os piores tormentos, era hora de saber até onde realmente era capaz de chegar. Menos fraca do que podia querer ser, a raiva ouriçada veio num caminho trôpego sem saber porque causava. Não havia mais discernimento no que queria do que se sentia, não havia mais pincéis o bastante pra pintar separadamente o que lhe era colorido e o que seria sempre branco. Era puro desalinho e ninho de rato. Pra variar, tinha que escolher entre ficar ali estacionada ou percorrer um caminho de cacos de vidro sem sapatos.  Era a única saída que existia, um anjo lhe soprara baixinho no final de um pesadelo que se escondia atrás das pedras do inferno, ganhando tempo com os demônios.
Descalça, sangrou até o último caquinho. Na tentativa de transformar lentamente a dor em uma única só, crua e nítida, como não costumava se resumir, se distraiu por trás do vermelho do sangue,  dando-se um  pouco de prazer e tentação, o qual somente o vermelho é capaz de proporcionar. Talvez pela perca de sangue, tenha ficado um pouco insana e sentiu uma sútil alegria de pensar que seu sangue iria se perder daquele corpo que já não tinha controle e dicernimento para estar punjante e reluzante nos cacos, realçando o escarlate e marcando território de vitória e rastros.
Quando terminou de atravessar o diabo quis tomar seu lugar mais uma vez, mas alguma coisa nela já era capaz de não permitir. O fôlego de belzebu era tão quente que a pele dela num momento estava bronzeada.
- Você não tem medo de mim? - perguntava o diabo como se perdesse algo lentamente.
- O que lhe dá mais prazer? - devolvia com outra pergunta, para infernizá-lo.
- Sua infância.
- Eu morria de medo de você...Mas ainda assim foi a melhor época da minha vida.
- Você sabe que não está viva como antes, não é? 
- Sei...eu estou mais madura e menos tensa.
- Você acha mesmo que maturidade te livra do medo das coisas?
- Talvez não sempre, mas ajuda.
- Você sabe que eu não vou desistir de você, não é? O medo é inevitável em qualquer fase e você sabe...eu posso me transformar no que eu quiser.
- Sei, mas também já sei te ouvir sem obedecer.
- Enquanto me ouvir serás minha.
- Na verdade não, enquanto eu te ouvir, saberei para onde não ir e mais! Saberei que você está numa posição ainda mais humilhante que a minha, a de precisar ser ouvido.
O diabo sumiu feito fumaça dos seus olhos, ela coçou um pouco os olhos e continuou andando.Uma coisa que nunca entendia era o porquê de alguns nascerem covardes e outros já não ousarem tamanha covardia contra a própria vida. 
Despertada naquela raiva ela não queria mais gritar, pois o grito já não era salvação, nem o silêncio prece, nem os barulhos pistas. Percebeu que conseguia sem pânico, lidar com toda aquele situação. 
Quando dormiu num jardim escuro que encontrou, o anjo lhe soprou ao fim de outro pesadelo que ao amanhecer os pés estariam cicatrizados e que todas as vezes que olhasse pra eles, se lembrasse de como a dor é passageira. 

Ao amanhecer, percebeu que o fardo estava leve...mas ainda não podia ter encontrado Deus, tudo ainda estava muito imperfeito, e ela sabia que quando fosse a hora, não haveria dúvidas nem decepções. O fardo estava leve porque estava sendo carregada por oito sombras desbotadas de defeitos e má vontade, a qual ela era fonte de alimento com todo seu pessimismo, agora...era hora de mudar os hábitos, até que as oito vomitassem seus pedaços.

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