Pelo o ar que eu não respiro.
Maquinando, bem sabia eu e mal sabia o ar, passando pelo meu cérebro, que me dava idéias absurdas de como driblá-lo. Meu plano só deu certo, porque o ar não pode percorrer pelas vísceras da minha alma, e me vangloriei de que eu era mesmo uma grande ameaça presunçosa contra ele. E o ar, circulando por meu corpo e cabeça, passando pelos meios e roteiros de minha armadilha e sua sina, se gabava sem desconfiar. Sorria por dentro quase me molhando de vontade de como seria a reação do ar sendo vítima pela primeira vez e lambendo os beiços fingida, agia como se fosse me levantar, me espreguiçar e lamentar por algo de ontem. O ar gentilmente, entrava devagarzinho pelas minhas narinas, até chegar nos pulmões e circular à vontade. E deixei como de costume, e ele circulou, como circula e circulará, até pegar a ginga e dançar toda sua coreografia pelo rosa confortável e saudável dos meus pulmões, creio que o deixei crente de que ele estava proporcionando só mais uma respiração, pois balbuciava. Juro! Que o ilustre oxigênio tinha certeza de que estava me invadindo como bem quisesse, e o intrometido se atreveu a entorpecer até as pequenas goteiras dos cantos das paredes dos meus pulmões! (desconhecidas pela própria medicina, pois não fumo e nem nunca fumei.)
Pela medicina, por mim não, só eu sei que os buraquinhos são causas naturais de quem guarda e gosta de sustentar o rancor. É. Está tudo lá em goteiras e de aluguel nos meus saudáveis pulmões. É, é... descarado da minha parte mesmo, não tem quem diga inclusive, tão bonita...
O rancor comigo, não simplesmente faz mal e deve ser liberado... é a soma de coisas passadas, que sinceramente não tem nada a ver com meu presente, mas que deixo (ou seria não deixo?). Assim, quando o tédio faz uma visita, eu posso pelo menos me arrepiar, me injuriar! Para suportar o pensando em nada, ou então para experimentar aquilo...sabe aquilo de quase morrer sentimentalmente sufocada?
E eu, cheia de ar, fechei os olhos e respirei como se nada mais fosse tão preocupante. Porém confesso, o ar me fez pensar se eu alimento meu rancor...minha consciência apareceu dizendo que eu não alimento nada, eu apenas guardo por um bem maior, para salvar a reputação de quem tá no meio, escancarado, vermelho, e do que realmente me convém. Ta escondido ali no pulmão, vez ou outra é o ar que aperreia.
Meu corpo, minha alma...putaria de política! Qual dos dois esconde o rancor? (- E não me julgue assim, porque pior seria como você sustenta a corrupção dos seus!) é que o seu pode chegar ao ponto de necessitar, de blasfemar sentimento jurado de pé junto, em nome da própria alma, exclusivamente para convencer alguém. O meu não, o meu é corrupto de formato mínimo, minhas goteiras estão ilegais no pulmão, mas essa é uma ilegalidade ligeiramente sutil, e mesmo minha alma achando um absurdo esse tipo de comportamento, mesmo a consciência me lembrando dos ditados da igreja sobre as consequências, ou mesmo uma terapeuta dando as mais sérias e convictas explicações que eu preciso, eu não estou envolvendo ninguém além de mim, e isso é heróico sim. Seria muita interpretação corrupta, caso tudo isso do corpo, da alma, fosse entendido como se eu estivesse defendendo os traidores, os amantes, os vaidosos, os egoístas, os mentirosos e os desgraçados...pode não parecer, mas sempre é assim: eu caminho pelas metades, no caso, sendo moderna pelas metades. Porque eu gosto da ideia de que o corpo não salva, e de que os fungos irão nos comer dia e noite até restar osso, e quem nunca negou isso foi a igreja (e também a biologia).
Enfim, eu ainda respirava, e brinquei com meu cuspi, sugando todos os gostos da língua para dentro, com uma sede que me atentava de que talvez estivesse acordado de forma errada, de que o sol não estava brilhoso o suficiente para mim, e de que talvez, com o ar que a gente respira, a gente não se brinca. Quando suspirei fundo, resolvi que nem a boca, nem as narinas estariam disponíveis mais, e o ar começou a circular preocupado, mas não imaginou que eu estaria o prendendo, e circulando num desespero, começou a me sufocar num aviso de que eu o soltasse. Deu vontade de rir, mas se fizesse era o recomeço, e preso em mim, ele estava realmente reflexivo, meio desorientado pela convicção que eu passava de que ele não sairia dali num suspiro. Mas ele como elemento é racional, o ar sempre soube que estaria bem no final de um suspiro, e acho que foi por isso que não se deu o trabalho de me pedir desculpas. Dei por mim que minha vingança pelo desdém carbônico podia ser frívola, mas não tinha pensado que fosse frívola ao ponto de ser fatal.
(...)
Lembro, papai dizia que as goiabas do cemitério eram as mais gostosas. Me passava pela cabeça que comer uma fosse praticamente estar comendo um dos nossos parentes mortos, afinal de contas, a fertilidade da terra (adubagem) para o nascimento dessa goiabeira é trabalhada necessariamente pelos fungos que precisamente nos devoram até chupar os ossos. Sem ar, percebo como a vingança é realmente um prato que se come frio. Entretanto não acabei com ela. Já ouviram a expressão nem morta? É bom que o senhor oxigênio saiba que meus pedaços estão espalhados nos fungos, na podridão, na terra e há alguns que nutrem as rosas e saudáveis goiabeiras deste cemitério. Isto quer dizer que alguém vai querer me comer. Estarei em um corpo novamente... É preciso apenas um velório de famintos tristes para esse dia chegar... E quando conseguir chegar no estômago de alguém, prometo que vou fazer sufocar. Outra vez, será revigorante sentir o ar constrangido.
Comentários
Voltou melhor que nunca!
bj e te amo!
fico pasmado com tanta poesia em forma de prosa!
É muito bom ler seus escritos. aqui vc se faz entender e explicar melhor as coisas. Manusear com abilidade as palavras de suas reflexões internas. Me sinto a vontade aki...