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quarta-feira, 16 de março de 2011

A culpa é da saliva

Entrou na sala do Dr. Aristissabal, aquela mulher magrela com um pequeno espaço entre a arcária dos dentes da frente. A coitada era mais bonita sem sorrir, isto era triste, mas bonito. Chegou, sentou, e não mudou de posição nenhuma vez sequer, desde o encontro das ancas a poltrona roxa fúnebre que não lhe agradava, e deixou claro logo que chegou.
-Quem escolheu essa cor doutor?
-Cor?
-Sim. Desta poltrona que terei que sentar.
-Bom, nem me lembro mais...está aqui tem um tempo, lhe incomoda?
-Desagradável.
Roía as unhas. Como minha comida revira no estômago, ela roia as unhas. E sua imaginação não evitava lembranças que não lhe perteciam, parecia um poço cheio de moedas e desejos alheios. Os pés balançavam no monólogo inteiro. 
-É como se roer as unhas me desse longo prazo para me destruir vagarosamente.
-Precisa de um prazo?
O doutor não se conteve de ver um corvo num dia frio do quadro da parede, sair voando e pousar em sua cabeça. 
-Então, roe para combinar com a suspeita de que queira se acabar? 
-Mais ou menos isso. Não vai me perguntar se as cuspo ou engulo?
-As unhas?
-Sim doutor, todo mundo pergunta isso!
-Você as engole ou as cospe?
-Cuspo. Algo me incomoda por dentro, não quero conviver com isso, entao cuspo. 
O doutor disse ao corvo mentalmente : "Por que não usa os pulsos de uma vez?" e o corvo saiu voando pra dentro do quadro novamente.
-Rou minhas unhas sem querer, juro!
-Porque algo lhe incomoda intimamente... e... não tem coragem de tranformar teu desconforto numa tragédia, certo?
-Tenho. Mas começando pelos dedos das mãos, não pelos pulsos.
-Tem esperança de que algo acontecerá e não precisará chegar tão longe?
-Talvez...prazos são de alguma forma negociação. 
E resolveu que já iria embora. Apertando-lhe a mão desengoçada por ter acabado de tirá-las da boca. Roía. 
-Talvez seja minha saliva doutor, e não a força dos dentes que as quebre.
E fechou a porta deixando o formato das ancas na poltrona.


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