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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Eles venceram, idiotas somos nós.

Um entra e sai danado, você todo animado. Casa cheia, casa vazia, “tudo vermelho na rua!”, você dizia. Eu fazia meus desenhos sem saber de fato o que tanto acontecia, minha irmã sempre atenta a teus passos, brigando na escola, com fitas nos pulsos, bonés, risadas. “Pega essa estrela pra ti, colabora!”. 
A cidade dividida entre o azul e o vermelho, entre a direita e a esquerda, entre o homem de barba e a mulher carismática. De um lado diziam: “Um véi desse, um véi desse maconheiro!”, do outro confirmavam: “Uma puta falsa dessa! Ela abraça e beija os pobres e se lava com nojo depois! Eu disse SE LAVA COM NOJO depois que eu conheço!”.
O portão não parava de abrir e fechar, eu já sabia pela cara da mamãe que a casa só seria casa depois que aquela doce loucura fosse embora. Nossa casa era uma casa agora, muito engraçada, era uma casa só de brincadeirinha. 
Eu, magrelinha, no coração dos recreios, onde poucas pessoas eram estrelinhas, na saída vi uma muvuca na frente da escola. Eram pessoas entregando jornais, propostas, camisetas, críticas, piadas, panfletos, santinhos sem igreja, adesivos... de repente, alguns alunos trocavam ofensas, xingamentos, gritos, brincadeiras, e um carro grande começou a passar cheio de gente vermelha, numa rua declarada explicitamente azul que começava uma vaia sem parar. 
Antes que eu me perdesse naquela multidão e misturasse o vermelho e o azul até virar roxo, Nina segura minha mão um pouco brava com as vaias e rapidamente grita em apoio ao carro de gente vermelha: “É isso ai! É isso ai seus idiotas! É isso ai!”, puxando sua estrela do peito e mostrando pra geral. Ao sermos vistas, somos aplaudidas por todos do carro, e todos do carro nos elogiam e fazem festa, até a rua acabar. A ameaça das vaias se intimida e olho pros lados e a tia dos chicletes também era vermelho, e nos abre um grande sorriso que me consola num sinal de proteção. 
O senhor chegava emocionado de um discurso, uma hora “o povo é o povo”, outra hora “o povo é burro”. O senhor chegava apaixonado pela coragem que venceu em um microfone que te entregaram no palanque, “o povo aplaudiu mais de 20 minutos!”, “os políticos me colocaram pra falar sem me avisar nada, esse povo é doido demais”. O senhor que não chora, estava pintado de emoção todos os dias contando daquele espírito que tomou conta da multidão, "a voz de deus é a voz do povo!". 
Não me lembro se existia nossos irmãos, nem o que lia na escola. Tudo agora era a rua, tudo agora eram aquelas cores e o que você falava, e as praças, e os loucos, e o povo, e o povo. Que importante pensar na cidade, que importante saber que eu sou a cidade... minha alma entre as grades, minha alma entre qual a diferença dos lados? Desenhava, desenhava... o senhor chega gritando “A cônego João lima inteira por conta própria! Por conta própria na música da Daniela Mercury! Loucura!”, imaginei a cena e me senti tão comovida quanto. 
Quando estava chegando perto de toda aquela loucura acabar, o cansaço, a dúvida, a certeza, a fé, o medo e as teorias ocupavam todos os lugares da cidade. No último dia, além de muito lixo, havia uma história de "tem caixinha de fósforo com 100 reais dentro", "doaram cestas recheadas de comidas e remédios a madrugada inteira com promessas e ameaças", e os teus sumiços pelas portas com outros homens vorazes para os lugares mais distantes da cidade. 
Quando tudo acabou, foi a tristeza mais estranha que parou na porta e dentro da nossa casa. Foguetes eram soltados sem parar.
-Isso é quase uma alegria de festa, né? - eu balançava na rede desorientada.
Nina emburrada ficava calada e parecia cada vez mais irritada com os foguetes, eu me preocupava.
-Se você quiser eu grito "idiotas!" pra esses vizinhos.-  tentava fazê-la se sentir melhor.
-Não adianta, acabou Nanda. Eles venceram, idiotas somos nós.
-Agora que eles venceram, não pode continuar ser loucos assim... igual tava?
-Não.
-Onde é que tá o papai? Será que ele chorou? - eu perguntava tentando imaginar.
-Você não entende nada, você não sabe é de nada. 
E tirava o boné vermelho toda triste indo pra sala.

(Para o dia dos pais, da filha lunática e anarquista.)

Um comentário:

blog do gallo disse...

Naquele dia não chorei . Hoje, agora marejados os olhos
obrigado . poucos pais recebem um texto de presente.