Páginas

domingo, 2 de abril de 2017

O velho saliente

Toda vez que passávamos por aquele rua, minha prima dizia "É aqui que ele mora, o velho saliente!", antes que eu olhasse, ela tampava meus olhos e dizia "Nunca olhe pra cá, ele pode ver que você viu!". Era uma casa muito próxima da casa do vovô. Diziam que ele morava sozinho e que tinha mexido na neta de 5 anos. "Mexido como?", eu perguntava sentindo pelo constrangimento da vovó, que era mexido de uma forma ruim. "Mexido Nanda!", minha prima dizia como quem não quisesse que minha vó contasse os detalhes. "Não passe nunca por essa rua sozinha, e se tiver que passar, passe bem longe, do outro lado, na outra calçada", vovó dizia. E então aquela rua passou a ser uma rua sombria para mim. 
A noite, eu sonhava que passava por aquela rua e via um velho balançando numa cadeira. Não conseguia ver seu rosto, mas ele já sabia que eu estava olhando para sua casa, e sabia mais... sabia que eu sabia do seu segredo. Então, eu acordava com medo e pensava "Por que? Porque a gente sabe e tem medo?". Dali em diante, sempre que precisei passar, passei pelo outro lado. E aos pouquinhos, tentando ver. Não me lembro da cor da casa, nem do portão, só me lembro de uma porta de vidro e que lá dentro parecia ser mal assombrado também. 
Certo dia, em alguma brincadeira dessas de rua que juntava mais crianças, não me lembro quantas meninas eram, mas uma de nós foi parar lá do outro lado da rua sombria e vinha correndo de lá, dizendo "Ele abriu a calça! Eu vi!". Não dava para entender direito o que acontecia, parece que ele tava vindo, e minha prima puxou minha mão, antes que eu pudesse vê-lo. "Vai ficar aí pra ele ver seu rosto?!", ela perguntava me puxando. "Pois por mim ele pode vir! Eu taco uma pedra na cabeça dele", escutava uma das crianças falando depois que já havíamos corrido. Comigo, pensava que tipo de inferno era aquele, de se esconder e sentir medo. "Por que não o matamos e libertamos a rua do medo?".  
-Ela tacou uma pedra nele, é doida! Mas bem feito! - minha prima dizia sobre a vizinha de pele mais escura e com estigma de adotada, de uma senhora da rua mais abaixo, amiga da vovó.
-E se contássemos para o vovô? Ele tem um revolver, talvez desse um jeito... - eu sugeria com medo.
-Você tá doida! Eles são amigos, ele nem sonha que ele é desse jeito!
Foi então que eu entendi que éramos nós que estávamos mal assombradas.
Outro dia, minha prima e eu balançávamos na cadeira de balanço, enquanto minha irmã fazia alguma coisa no quarto, de repente, um velho de cabeça branca, abria o portão lá da garagem e caminhava em passos lentos para a entrada.
-Quem é esse senhor que tá vindo?- eu perguntava.
-O quê?! - minha prima arregalava os olhos e se assustava.
-O que?!
-Shiiiiii, é o véi saliente! Meu deus, e a vovó saiu! 
Meu coração disparava, enquanto minha prima puxava minha mão e me levava para o banheiro dos fundos da casa. 
-Fica quietinha! Não fala nada.
Escutávamos então os passos do velho pela casa. Parecia um filme de terror. Eu preocupada com minha irmã, perguntava o que faríamos se ela saísse do quarto e se deparasse com ele. 
-Shiiiii, calma! Vamos espiá-lo...
Abríamos a porta do banheiro com calma e colocávamos as duas, as cabeças para fora da porta. Uma em cima e outro embaixo. O velho abria a geladeira, fechava, e tomava uma xícara do café que estava na mesa. Olhava o relógio na parede, suspirava, pensava sozinho olhando para algum lugar. Usava uma calça escura, e uma camisa branca de manga comprida que eu nunca mais esqueci. Tinha cabelos brancos só dos lados, todo careca no meio da cabeça. E antes que eu pudesse gravar seu rosto, só me lembro de uma expressão rabugenta, e que ele começou a olhar fixo para algum lugar. Fechávamos a porta rapidamente sem barulho e tampávamos nossa respiração. Escutávamos passos dele indo embora.
-Ele viu a gente será? - eu perguntava baixinho. 
-Acho que não, fica quieta...
-Ele ta indo embora parece... 
-Parece que já, mas vamos esperar um pouco.
Contamos praticamente até dez e saímos na ponta dos pés do banheiro. Minha prima olhava a xícara que ele havia tomado café e dizia "Folgado! Eca, que nojo!". 
Íamos até a sala e lá estava minha irmã mexendo com papéis e canetas.
-Você viu que ele veio aqui?! - minha prima perguntava
-Quem?
-O velho saliente! - eu dizia.
-Aqui? 
-Sim! Ele entrou aqui, a gente correu pro banheiro, ficamos preocupadas de você sair e dar de cara com ele, o que você estava fazendo?! - minha prima perguntava.
-Lá dentro do quarto, brincando.
-Sortuda! - eu dizia.
-Já pensou se ele te visse?! - minha prima indagava.
-Tem certeza que era ele? - minha irmã retrucava.
-Rum, vamos trancar essa porta... foi por pouco!- minha prima orientava.
Não sei que tipo de amizade ele tinha com o vovô, nem porque não poderíamos contar que tínhamos medo dele. Vovó nunca explicou direito, e quando chegou da rua, contamos o que havia acontecido e minha prima demonstrava tudo que ele tinha feito numa imitação até cômica. "Ainda bem que vocês se esconderam", ela disse como se fôssemos muito espertas. Foi quando eu percebi que independente do velho, era tudo aquilo que me deixava com medo.Vovô nunca saberia nada a respeito.





  
    



Nenhum comentário: