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quarta-feira, 4 de maio de 2016

O bairro

Tem um lugar atrás do meu bairro que no meu sonho é diferente. Quando eu estou dormindo é diferente. Me obrigam a buscar alguma coisa nesse lugar, e eu nunca sei porque eu vou, mas sempre sei que sentirei medo. Eu obedeço as ordens de alguém que eu não vejo, e quando estou lá acordada, aqui eu estou dormindo. Eu sou eu, há muito tempo atrás. Tem uma igreja enorme que arranha o céu, e de repente eu estou rezando muito mais do que eu rezo, de tanto medo. O diabo é um pretexto quando eu estou acordada. Lá, deus é que é. Mesmo assim, minha esperança é fugir. Fica sempre aquela impressão de que preciso enganar alguém, de que meu tempo está passando. Eu vou conseguir. Meu cheiro é lamentável, minha cabeça coça, minhas pernas estão roxas debaixo de um vestido que pesa. Tenho a impressão de que as minhas partes intimas são da cidade inteira. Eu não sou sagrada. Não sinto fome, não tenho dinheiro, mas de alguma forma eu sei que sou importante, eu estou fugindo. Os homens me apavoram, me traçam, me lambem. Tem uma caveira na porta da casa de uma macumbeira nesse bairro. Ao mesmo tempo que eu sei que é pra lá que tenho que ir, eu me escondo. Fico o tempo inteiro frenética, paranóica. Não sei porque, mas moro com mulheres que costuram e nunca as vejo. Somente os panos e retalhos por toda a casa, e eu me identifico com eles... perdidos em pedaços, não transformados, restos e restos... Pra onde eu corro eu nunca sei. Se eu não me movimento, me sinto cada vez mais enraizada no medo. Eu acordo sempre antes de encontrar uma solução. Aliviada e pertubada ao mesmo tempo, me pergunto o resto do dia se eu corria em busca de coragem ou em vão. Queria eu, ali dormindo, não voltar nunca mais pra descobrir. Mas os dias passam, os anos acabam, e uma hora ou outra quando eu não estiver acordada , lá estou eu... cumprindo ordens naquele bairro. 

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